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"A produção arquitetônica feminina cearense: visibilizando a trajetória de Nélia Romero"

Atualizado: 18 de out. de 2023

por Ingrid Teixeira Peixoto




Resumo: Este trabalho pretende fazer uma breve investigação sobre a desistorização da produção feminina na história da arquitetura, dando enfoque na trajetória da arquiteta cearense Nélia Romero e suas contribuições para o cenário arquitetônico da cidade de Fortaleza. Rever a invisibilidade das arquitetas na historiografia geral é também enxergar a história da arquitetura a partir de uma perspectiva mais igualitária entre os sexos. Com o objetivo de contextualizar o resgate da produção dessa arquiteta e visibilizar a produção das mulheres no espaço cearense, e, consequentemente, sua contribuição para viabilizar o direito das mulheres no uso e produção da cidade.


Palavras-chave: Mulheres arquitetas, Nélia Romero, Arquitetura cearense

 

Vivemos uma época de necessárias atualizações historiográficas e se faz imperativo repensar o lugar das mulheres em muitos espaços, inclusive, na história da arquitetura. Pensar a condição da mulher, é também pensar em aspectos centrais da nossa sociedade, fundada em alicerces patriarcais, racistas e classistas, trazendo de forma global a questão das minorias, direitos civis, políticas públicas, preconceito e violência. Trata-se de um fazer político.


Ao revisar a historiografia, recuperamos as trajetórias, tanto das arquitetas invisibilizadas, quando daquelas que tiveram destaque por enfrentar os obstáculos de uma profissão dominada pelos homens, assim como relata Zaha Hadid[1], primeira mulher a ganhar um prêmio Pritzker:

É uma indústria muito dura e dominada por homens, não apenas em práticas de arquitetura, mas também por desenvolvedores e construtores. Eu não posso culpar os homens, no entanto. O problema é a continuidade. A sociedade não foi criada de forma a permitir que as mulheres voltem ao trabalho depois de um tempo de folga.[2]

Em 2014, surgiu no Brasil uma iniciativa que reconhecendo este desequilíbrio bibliográfico: o coletivo “Arquitetas Invisíveis”[3], criado por estudantes da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília- UNB, e que buscou recuperar a vida e obra de arquitetas que sofreram o apagamento historiográfico. O objetivo do projeto era ampliar o repertório dos estudantes e profissionais de arquitetura e urbanismo e, ao mesmo tempo, incitar a discussão sobre essas desigualdades entre arquitetos e arquitetas no meio acadêmico e profissional.


O Conselho de Arquitetos e Urbanistas – CAU –, também divulgou em 2019, uma radiografia da profissão[4] mostrando as condições de gênero desiguais, na qual apesar de as arquitetas representarem a maioria dos profissionais no Brasil - cerca de 63% do total de arquitetos registrados - isso não se reflete na sua representação social. Os obstáculos para a representatividade feminina se encontram, tanto por serem em minoria nas posições políticas e nas organizações do setor, quanto pela baixa representatividade nas premiações em concursos nacionais. Segundo o CAU, apenas 17% dos prêmios foram concedidos a equipes lideradas por mulheres, caindo para apenas 15% em concursos internacionais. Da mesma maneira, a participação de arquitetas em concursos públicos, como por exemplo, no projeto para a Sede do CAU/BR e IAB/DF- Instituto de Arquitetos do Brasil, apontou que apenas 16% das equipes concorrentes foram coordenadas por mulheres.[5]


Nesse contexto de desigualdade representativa, apesar de sempre terem existido arquitetas com uma expressão arquitetônica significativa que atuaram e/ou ainda atuam no Ceará, a documentação acerca do trabalho dessas mulheres é quantitativamente menor do que seus pares do sexo masculino, o que reforça o apagamento dessas arquitetas e consequentemente sua desvalorização.

Apesar do pouco destaque historiográfico, as arquitetas cearenses também produziram obras de relevância arquitetônica, à exemplo da arquiteta Nélia Rodrigues Romero, figura 1.


Figura 1: Foto do acervo pessoal de Nélia Rodrigues, com edição de imagem da autora.


Nascida em Itapipoca, interior do Ceará em 1953, mudou-se para Fortaleza aos 11 anos com os pais e os irmãos, trazidos pelo sonho de seu pai de ver todos os filhos cursando faculdade na capital. Em 1972, Nélia ingressa na Escola de Arquitetura e Artes da Universidade Federal do Ceará. A arquiteta relata[6] que sua turma era formada majoritariamente por mulheres: das 20 vagas, cerca de 14 eram ocupadas por mulheres.

Nelia graduou-se em 1976, e em seu primeiro ano de formada trabalhou no escritório do renomado arquiteto Neudson Braga, saindo posteriormente para trabalhar no setor público, na Superintendência de Obras do Estado do Ceará- SOEC, onde, por algum tempo, foi a única funcionária mulher. Permaneceria então, atuando no setor público ao longo de toda a sua carreira profissional. Em 1997, a SOEC foi incorporada pelo Departamento de Edificações, Rodovias e Transportes- DERT, e em 2007, o órgão mudou novamente de nome para Departamento de Edificações e Rodovias – DER, na tentativa de se adequar às novas configurações da abrangência de projetos: edificações, rodovias estaduais e transportes metropolitano e municipal.


Em 2011, o Governo do Ceará realizou uma nova reforma institucional, transformando o DER em duas novas autarquias e criando o Departamento de Arquitetura e Engenharia – DAE e o atual Departamento Estadual de Rodovias – DER.[7] Durante seu tempo no setor público, Nelia teve oportunidade de trabalhar com grandes obras públicas e projetar escolas, presídios e hospitais. Ao lado de arquitetas e arquitetos como Melânia Cartaxo, Beatriz Magalhães Carneiro, Janaína Teixeira, Roberto Castelo e Robledo Valente, foi coautora de obras importantes para a capital cearense como: o Instituto Médico Legal-IML (2012), o Fórum Clovis Beviláqua (sede de 1997), a reforma do Hospital Geral de Fortaleza-HGF (2011), a ampliação do Hospital Albert Sabin (2009), a reabilitação e restauro do Palácio da Abolição (2011), e a requalificação da Praça Luiza Távora (2011) e a escola Gentil Barreira (2018).


Nelia em conjunto com a arquiteta Melânia Cartaxo, projetou a estrutura que hoje é chamada de Ceart - Centro de Artesanato do Ceará na praça Luiza Távora, ver na figura 2, um grande polo para o artesanato cearense. A requalificação da Praça Luiza Távora também é um marco para Fortaleza, hoje é uma das praças mais frequentadas pela população e palco de muitas ações civis e programações governamentais.[8] “Se eu tivesse ficado no setor privado, jamais teria produzido o que produzi [...] eu gostava de projeto, minha realização era o projeto, trabalhar com arquitetura diretamente”[9], diz Nélia em entrevista concedida em 17/04/2019.



Figura 2- Praça Luiza Távora em Fortaleza Fonte: https://www.tripadvisor.com.br/LocationPhotoDirectLink-g303293-d7620260-i221237114-Praca_Luiza_Tavora-Fortaleza_State_of_Ceara.html

Outro grande projeto institucional foi o Fórum Clovis Beviláqua, na figura 3 abaixo, cujo edifício possui 75.000 m² de área construída e extensão horizontal de 330 metros, o que lhe conferiu o status de maior edifício público da América Latina, por onde passam em torno de cinco mil pessoas, diariamente.[10] Nélia também projetou várias escolas, e aqui destacamos a Escola Gentil Barreira, um de seus últimos projetos no setor público, projetada em conjunto com mais duas arquitetas: Karinne Victor e Aline Cordeiro. A escola, figura 4 abaixo, foi inaugurada em 2018, também em Fortaleza. Esses projetos possuem grande relevância, tanto arquitetônica quanto como objetos públicos de uso da população. Esses projetos possuem grande relevância, tanto arquitetônica quanto como objetos públicos de uso da população.


Figura 3- Fórum Clóvis Beviláqua em Fortaleza Fonte: https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/forum-clovis-bevilaqua-recebe-sistema-de-videoconferencia-para-realizacao-de-audiencias.ghtml


Figura 4- Escola Gentil Barreira em Fortaleza Fonte: https://www.sop.ce.gov.br/2018/02/26/escola-gentil-barreira-inaugura-novo-modelo-de-escola-de-ensino-medio/

Durante os anos 1980 no Ceará, a carga horária dos arquitetos do Estado foi reduzida para cortar gastos públicos, e com o tempo extra Nélia abriu um escritório com dois colegas de profissão: Melânia Cartaxo e Marcelo Colares. Sua atuação no setor privado ficou restrita à poucos projetos para amigos e familiares, tendo deixado o escritório para se dedicar apenas ao serviço público. De 1997 a 2014 atingiu o ápice de sua carreira institucional sendo nomeada como chefe diretora de arquitetura do DAE - Departamento de Arquitetura e Engenharia. Tendo saído em 2017 do cargo público, a arquiteta encontra-se atualmente aposentada, porém, sua trajetória profissional apesar de recente, foi ofuscada no cenário cearense. Essa invisibilidade circunscrita às mulheres, levanta um questionamento: será que um arquiteto com a mesma trajetória de Nélia, que utilizou a arquitetura para atender as demandas sociais através do setor público, ainda estaria nas sombras?


Em uma nova e breve entrevista realizada em 04/02/2021 Nélia comenta um pouco sobre suas vivências enquanto aluna, ingressa em 1972 e arquiteta formada apartir de 1978:


Ingrid Peixoto: Nélia, você lembra de ter tido professoras mulheres?

Nélia Romero: Eu tive algumas professoras, de história da arquitetura incialmente: Nícia Bormann, Margarida Júlia e a Vera Mamede. De mulheres eu só tive essas três.


Ingrid Peixoto: Você se sentiu que os professores tinham um tratamento diferente com as alunas?

Nélia Romero: Alguns professores homens faziam discriminação com as alunas que viam de colégios católicos, faziam aquela brincadeirinha, como se fossem menininha, mas isso dentro da brincadeira, da jocosidade, mas eu acho que, tinha um certo preconceito mesmo [em relação às mulheres]

Ingrid Peixoto: A sua turma passou por trote durante o ingresso na faculdade?

Nélia Romero: Claro, tentaram fazer um trote. Mas minha turma foi muito assim diferente, porque nós fizemos um primeiro semestre, a universidade fez um teste, naquela época, todos os alunos que passaram no vestibular, teriam que novamente fazer algumas disciplinas, que eles chamavam “o basicão”, então quando nós entramos mesmo, no segundo semestre, então acho que essa questão do trote ficou um pouco esvaziada por conta disso.


Ingrid Peixoto: Agora saindo da faculdade, qual foi seu primeiro projeto de obra construída, ele ainda existe?


Nélia Romero Quando eu concluí, aliás tá fazendo hoje 44 anos, então é muito tempo. No primeiro ano [após formada] eu trabalhei no escritório do Neudson Braga, então a gente fazia mais projetos de urbanização, de praça. Ele tinha um contrato nessa época que fazia vários projetos na cidade do interior, então eram coisas assim. Mas quando eu entrei no Estado, como funcionária do Estado, comecei a trabalhar sozinha, a ter responsabilidade sobre o projeto, meu primeiro projeto foi uma rodoviária [na cidade] de Tauá. Foi até executada, toda em concreto, iluminação zenital. Era um trabalho interessante.


Ingrid Peixoto: Ainda existe registro desse projeto?

Nélia Romero: Não, tenho não. Por que naquela época a gente fazia tudo em papel vegetal né, tudo desenhado à nanquim. Então todo esse acervo ficou lá, antes era PROEC, depois passou pra SEDET, depois DAI, agora já é SOP, então eu não sei se todos esses setores de projeto foram acompanhando essas alterações do Orgão. Deve estar lá em algum canto. Ingrid Peixoto: Mas ainda existe essa rodoviária ou ela já foi demolida?

Nélia Romero: Não sei se ela teve alteração, mas ela existe sim lá em Tauá.


Ingrid Peixoto: E quais projetos você considera mais emblemáticos na sua trajetória?

Nélia Romero: Nós fizemos projetos de escola, de hospitais. Também participei, participei não, nesse caso o projeto é meu, fiz sozinha, da rodoviária de Itapajé, de Russas,[Ceará] toda na estrutura espacial metálica. É bem interessante esse projeto. Depois nós fizemos também, era um projeto padrão nesse caso, já com estrutura de aço, esse sim era o de Itapajé, esse em estrutura espacial é só o de Russas. Eu gosto muito desse projeto. E fizemos o Forúm Clóvis Beviláqua, a praça da Ceart, a original, porque depois alteraram bastante. A adequação da Ceart também, um projeto todo em carnaúba, mas não estava estruturalmente adequado para a carnaúba, então nós tivemos que substituir todo por madeira entrelaçada. Ingrid Peixoto: O que foi modificado na projeto original da praça?

Nélia Romero: A proposta inicial do prédio era ter várias lojas de artesanato, essa coisa toda, depois acho que nunca trabalharam isso adequadamente, e acabou que transformaram as salas em áreas administrativas. E a central que era pra ser um restaurante, mais voltado para comida regional, ficou a parte de artesanato. Teve muito projeto que não foi executado, também. Mas tem um que eu gosto muito, que não foi executado, que foi o ministério público Estadual, ficou só na fase de anteprojeto.


Por fim peço que Nélia reflita sobre a condição de ser mulher e arquiteta, e ela comenta:

“[...]o mais difícil pra mim foi o reconhecimento como funcionária pública, saber que eu Nélia, como funcionária pública tenho valor. Posso fazer. Sou capaz de fazer. Porque na verdade eu nunca pautei o meu trabalho ou qualquer tipo de movimento que eu tenha pelo fato de eu ser mulher, 'ah porque eu sou mulher eu posso, por ser mulher eu não posso'. Eu acho que eu entrava, pelo menos na minha cabeça, em igualdade de condições. Que o mundo é contrário, é verdade, o mundo se opõe a mulher, por todas as questões que a gente tem que vencer, na família, fora da família, toda a questão doméstica fica à cargo da mulher, ou a maior parte, ainda mais se você tiver filhos.”

Cabe a nós, resgatar arquitetas como Nelia Romero e reconhecer que a invisibilidade feminina na historiografia geral resulta de uma também histórica disparidade entre os espaços e o papel destinados à homens e mulheres na sociedade. Nesse sentido, existe uma questão de justiça e compensação histórica. Portanto, assumir que é necessária uma investigação sobre a escassez de trajetórias e referências de arquitetas -o que também defasa a historicidade arquitetônica- é perceber que não existiam condições igualitárias para que as arquitetas se fizessem mais presentes. É também questionar a perpetuação dessa disparidade entre bibliografias femininas e masculinas. Sendo assim, validar essas tantas mulheres que resistiram, existiram e ainda existem é caminhar mais próximo para alcançar a equidade entre os sexos.

 

Notas



[2] - Tradução da autora





[6] - Informações obtidas em entrevista com a arquiteta, realizada em 17.04.2019.



[8] - Informações disponíveis no site: https://www.ceara.gov.br/tag/praca-luiza-tavora/


[9] - Trecho transcrito da sua fala em entrevista, realizada em 17.04.2019.


[10] -Informações disponíveis no site oficial: https://www.tjce.jus.br/institucional/forum-clovis-bevilaqua-institucional/

 

Referências


Romero, Nélia Rodrigues. Nélia Romero: entrevista [16 abr. 2019]. Entrevistadora: Ingrid Teixeira Peixoto, Fortaleza, CE, 2019.


Romero, Nélia Rodrigues. Nélia Romero: entrevista [04 fev. 2021]. Entrevistadora: Ingrid Teixeira Peixoto, Fortaleza, CE, 2021.

 

Autora: Ingrid Teixeira Peixoto, Arquiteta e urbanista, Mestranda na Universidade Federal do Ceará. Fortaleza - Ceará (Brasil).


 

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