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"Não sou moralista, quero simplesmente abrir espaço à vida."

Atualizado: 18 de out. de 2023

A arquitectura de Léonie Geisendorf (1914-2016)


por João Manarte



Recordo o encontro com a arquitectura de Léonie Geisendorf, nos primeiros dias do ano de 2019, enquanto percorria Estocolmo pela última vez, com a sensação forte que ainda hoje permanece da sua construção, sob forma de imagem latente desencadeada pela percepção material singular, jamais minorada pela distância física e temporal que a sucedeu. Como por acaso, encontrei o antigo liceu de St Göran Gymnasium, um edifício actualmente convertido em residências para estudantes, onde de imediato a minha memória pode identificar as afinidades com a obra de Le Corbusier, talvez seduzida pela clareza modesta, ordenada e racional das formas que pareciam denunciar uma íntima relação com a cidade. Uma memória que persiste por ser profundamente cúmplice da apreensão da matéria construída num lugar em permanente transformação - a cidade de Estocolmo -, simultaneamente reavivado pelo movimento dinâmico das pessoas que aí habitam, um movimento induzido pela liberdade existente no acto de caminhar, mais a ver com um estado de sedução do que com a mera orientação. O olhar conduzido pela lente fotográfica percorreu o edifício pelo exterior e pelo interior dando conta de uma arquitectura que desejava tornar-se cidade ao recusar-se actuar como invenção gratuita, e ao abraçar forma e função naquilo que identificava como um propósito colectivo - a abertura do espaço à vida.


I.

Léonie Geisendorf nasceu em Varsóvia, no dia 8 de Abril de 1914. Assumiu a profissão que desde nova desejou abraçar com o verdadeiro sentido de responsabilidade de saber correr riscos, reconhecendo o desafiante papel didáctico da arquitectura, aproximado-a da pintura e da escultura, na incessante busca pela beleza. Enquanto estudante francófona do Instituto Federal de Tecnologia de Zurique (ETH) na década de 1930, é logo notório o forte vínculo que estabeleceu com o pensamento de Le Corbusier - com quem teve a oportunidade de estagiar em 1937, e trabalhar em 1938 -, adoptando a força criativa e o espírito infatigável do mentor que se apresentava como figura absolutamente incontornável para uma geração confrontada com a ideia de modernidade: «[Le Corbusier] atacava cada problema pela raiz, reduzindo-o à sua essência, libertando-o de falácias, preconceitos ou opiniões conservadoras, sempre à procura da solução a que correspondesse a justa forma poética - “uma arquitectura que toca no coração”. (…) Intransigente, inabalável, convicto das suas ideias, empenhava-se apaixonadamente em tudo o que assumia e ensinou-nos uma lição para toda a vida - ter coragem nas próprias convicções, sendo capaz de assumir a responsabilidade sem ceder à adversidade.».[1]


Entre outros projectos, contribuiu para a finalização do Pavillon des Temps Nouveaux para a Exposição Universal de 1937, em Paris, e na montagem da exposição retrospectiva composta pelas pinturas de Le Corbusier, organizada pelo Museu de Arte Moderna de Zurique em 1938.

A exposição iria colocar-lhe a oportunidade de colaborar futuramente com o mestre suíço, em parte motivada por um episódio caricato - que enunciaria a postura manifestamente ousada da então jovem estudante -, que a própria recordaria com apreço. Durante o processo de montagem das pinturas, e a poucas horas da inauguração, um colega estagiário entornou, acidentalmente, tinta sobre uma tela pousada temporariamente no chão. A evidente descontração na reação de Le Corbusier, perante a aparente desolação do colega, é recordada nas palavras do próprio: «Bon, bon, há diversas pinturas. Retire essa, enfin, faça qualquer coisa». Como retirar uma das pinturas de exibição provocaria um estranho vazio na parede que não passaria despercebido, e não reconhecendo particular notabilidade à pintura em questão, Léonie Geisendorf decidiu audaciosamente pintar uma flor a partir da mancha de tinta deixada na tela, pendurando-a logo de seguida. A flor, que não passou igualmente despercebida a Le Corbusier, foi recebida com sentido de humor: «Ao passar novamente pela pintura, reparou na ‘flor’ de imediato, soltou uma gargalhada e acenou na minha direcção. Confessei-lhe ser a responsável, acrescentando que, dadas as circunstâncias, não havia outra alternativa. Considerou que demonstrara capacidade de iniciativa e convidou-me a passar pelo estúdio sempre que estivesse por Paris.“Pour travailler?”, perguntei-lhe timidamente.».[2]


A sua segunda colaboração no estúdio de Le Corbusier, ainda que intensa, revelou-se de curta-duração, acabando no Verão desse mesmo ano. Nessa altura, nenhum dos colaboradores recebia salário (nem mesmo Junzô Sakakura, ou Charlotte Perriand que trabalhou durante dez anos no atelier), e trabalhar sem remuneração, em Paris, afigurava-se uma realidade incomportável. Apesar disso, Léonie Geisendorf recordava a experiência como «o encontro com um génio, com o arquitecto mais prestigiado de todos os tempos», salientando o legado que partilhou com todos - das obras construídas, à publicação integral Œuvre complète -, e destacava o papel orientador que exerceu no decorrer do seu percurso académico e profissional. Chegou mesmo a afirmar que «um(a) arquitecto(a) que não é capaz de encontrar a resposta para o seu problema na Œuvre complète, certamente não procurou devidamente»[3], por sentir que continha tudo aquilo com que um(a) arquitecto(a) se poderia confrontar.


O seu regresso a Estocolmo, no Verão de 1938, coincidiu com a chegada de outros colegas de profissão, como o caso do arquitecto inglês Ralph Erskine, amigo próximo, da mesma idade, que se mudava para a Suécia atraído pelo clima-político, a então célebre social-democracia. Entre 1938 e 1949 colaborou no escritório de algumas das principais figuras da arquitectura moderna sueca, como o arquitecto Sven Ivar Lind e o arquitecto Paul Hedqvist. Em 1950, abriu escritório próprio em Estocolmo, em parceria com o seu marido Charles-Édouard Geisendorf, e juntos realizaram uma série de concursos bem sucedidos, tendo construído, em 1951, o primeiro grande projecto, a villa Ranängen em Djursholm. A sua obra começou a despertar o interesse público no final da década de 50 pelo tratamento expressivo e meticuloso dos diversos materiais construtivos, principalmente o tijolo e o betão aparente. O projecto das casas em banda Riksrådsvägen, em Bagarmossen (1953-1965), o edifício do liceu St Göran Gymnasium, em Estocolmo (1954-61), ou a villa Delin, localizada em Djursholm (1968-70), são exemplos que ilustram bem os princípios da sua arquitectura que pode ser perfeitamente enquadrada dentro do movimento brutalista escandinavo.


II.

O liceu St Göran Gymnasium é o projecto que melhor expressa a afinidade às ideias de Le Corbusier, citando directamente a Unité d’Habitation de Marselha, na composição alternada dos elementos claros e escuros que compõem os alçados exteriores do edifício. A localização do ginásio na cobertura é também uma solução que estabelece um paralelo evidente com o programa da Unité d’Habitation, tendo sido previamente desenvolvida durante a sua colaboração com Le Corbusier, em 1937. O impressionante grau de perfeição dos acabamentos e dos detalhes construtivos, quer nas secções modulares das fachadas revestidas a vidro laminado temperado, quer no posicionamento dos pilares de betão armado do átrio de entrada com pé-direito triplo, demonstra o carácter ousado, preciso e exigente da sua obra. No interior, o habitante confronta-se com uma arquitectura minuciosamente detalhada, seja no desenho das vigas curvilíneas da cobertura do ginásio, ligeiramente abatidas em direcção ao pavimento, seja na distinta composição presente no desenho do pavimento do átrio de entrada, com a introdução de subtis mudanças de material. Um projecto que valoriza o profundo conhecimento da forma na sua íntima relação com a matéria, na tensão entre a expressividade textural crua do betão aparente e a composição regrada da fenestração dos alçados. A composição dinâmica presente no padrão variável dos alçados é responsável pela introdução de uma certa leveza na grande massa vertical edificada. A grande maioria dos materiais utilizados exibe uma superfície texturada sem qualquer revestimento adicional, que evidencia essa valorização da expressão natural da matéria construtiva. Como recordam Léonie e Charles-Éduard Geisendorf, «ser capaz de capturar a efémera frescura do edifício em bruto, preservando a força puramente expressiva das suas linhas mestres, manter-se-á, presumivelmente, para sempre o inalcançável sonho do(a) arquitecto(a).»[4]

Poucos serão os edifícios modernos em Estocolmo capazes de manifestar a mesma contundência material, e com uma consistência estrutural tal que contribua intensamente para esse aspecto.


Este edifício, que originalmente constituía um liceu dedicado às actividades domésticas e à costura, inseria-se num complexo composto por um importante espaço de assembleia, previsto junto ao pátio central do liceu, que acabou por nunca se realizar. Inicialmente, previam-se ainda áreas para um edifício administrativo, uma residência de estudantes e uma creche, que posteriormente foram concedidas a edifícios de habitação. O tempo, no entanto, modifica-lo-ía, e apesar de uma certa continuidade programática da proposta de reabilitação do colectivo Södergruppen Architects, que proporia uma reconversão dos diversos pisos em apartamentos para estudantes, o edifício acabaria, segundo Léonie Geisendorf, desvirtuado: «o sítio encontra-se hoje profundamente mutilado»[5]. E se os anos passados sobre Léonie - cem na altura desta violenta declaração - aqueciam e adoçavam a perspectiva lançada sobre os tempos primeiros da sua obra, num sobrecarregado desejo de protecção ou inevitável saudade, a verdade é que a reconversão revelar-se-ía, não só enquadrada no propósito original do edifício, que sempre se mostrou aberto e vibrante, mas também particularmente atenta e sensível ao diálogo recíproco entre a iluminação natural e a presença textural do betão aparente.


A atitude visionária e o carácter persistente de Léonie Geisendorf demonstram como ao longo de mais de meio século de actividade foi capaz de conduzir o exercício profissional sempre com determinação e mão firme. A sua coragem e aparente intransigência contribuíram seguramente para combater a desigualdade de género existente no seio da profissão, e para conseguir ver construídas muitas das suas excepcionais obras. Uma arquitecta com uma obra ousada, consciente e sensível, e com um carácter igualmente destemido que se lhe reconhece, e que a própria identificou ter sido importante numa profissão exigente e tendencialmente masculina: «Tive bem presente que era intransigente e, por vezes, até mesmo pouco diplomática. Talvez tenha afastado uma ou duas pessoas, de quando em quando. Talvez essa seja uma característica feminina - querer dar conta do recado e procurar chegar a bom porto».[6]



1 Villa Ranängen, Djursholm 1953, Sune Sundahl/ArkDes [ARKM.1997-110-0641-01]


2 Casas em banda Riksrådsvägen, Bagarmossen 1956, Sune Sundahl/ArkDes [ARKM.1988-111-X241-12]


3 Liceu St Göran Gymnasium, Estoclomo 1960, Sune Sundahl/ArkDes [ARKM.1988-111-X1935-6]


4 Átrio de entrada (escadas) do liceu St Göran Gymnasium, Estoclomo 1960, Sune Sundahl/ArkDes [ARKM.1997-110-0644-02]


5 Átrio de entrada (elevadores) do liceu St Göran Gymnasium, Estoclomo 1960, Sune Sundahl/ArkDes [ARKM.1997-110-0644-03]


6 Átrio de entrada (auditório de música) do liceu St Göran Gymnasium, Estocolmo 2019, Fotografia do autor


7 Foyer e terraço do liceu St Göran Gymnasium, Estocolmo 2019, Fotografia do auto


8 Átrio de entrada (pátio exterior) do liceu St Göran Gymnasium, Estocolmo 2019, Fotografia do autor


9 Pátio exterior (entrada floyer) do liceu St Göran Gymnasium, Estocolmo 2019, Fotografia do autor

Entrada foyer (caixilharia) do liceu St Göran Gymnasium, Estocolmo 2019, Fotografia do autor

 

Notas


[1] - Leónie Geisendorf, “Chez Le Corbusier” in Upwind: the Architecture of Leónie Geisendorf, Estocolmo, Arkitektur Förlag, 2014, p. 44. A tradução de todos os excertos é da nossa responsabilidade.


[2] - Idem, Ibidem.


[3] - Léonie sabia que Le Corbusier tinha plena consciência da importância da publicação Œuvre complète, por nessa altura ter percebido que o arquitecto valorizava os seus livros e escritos acima de tudo, chegando mesmo a vê-los como a principal razão para lhe poder ser atribuído o prémio Nobel. Idem, p. 48.


[4] - Léonie e Charles-Éduard Geisendorf “Arkitektur nº. 9” (1960), in Idem, p. 36.


[5] - Idem, p. 5.


[6] - Idem, p. 12. Itálicos nossos.


 

Autor: João Manarte


 

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