por Mariana Alves Barbosa, com a colaboração de Juliana Trama, Thaís Coelho e Amanda Tamburus
Resumo
O presente artigo apresenta o coletivo brasileiro ARQTETATLAS e sua pesquisa ativista, que identifica arquitetura contemporânea concebida por mulheres, e mapeia as arquitetas autoras, a partir do recorte territorial latino-americano. Iniciada em 2018, a investigação do coletivo já identificou e mapeou cerca de 200 arquitetas latino-americanas e suas produções. A pesquisa, organizada em atlas, permite a construção de um banco de dados que contribui para uma narrativa mais plural do ofício. Dessa forma, a aproximação ao prêmio “Seleção Panorama de Obras”, da XI BIAU, pretende refletir sobre representatividade feminina e apresentar os projetos e arquitetas premiadas nesta edição.
Palavras-chave: Arquitetas; arquitetura; América Latina; representatividade; gênero; atlas; projeto.
Introdução
Se o projeto da casa já é um espaço onde se reconhece a atuação das mulheres na arquitetura no Séc. XX, durante o Séc. XXI essa atuação se consolidou, seja pela “associação histórica da casa ao feminino; os investimentos financeiros mais modestos e o prestígio relativamente menor” (LIMA, 2014, p.83), seja pela maior demanda por projetos residenciais quando comparada à dependência de investimentos públicos e interesse privado na construção do espaço coletivo.
A penetração de trabalhos liderados por mulheres dentro do espaço profissional da arquitetura segue, no entanto, ganhando uma maior dimensão, trazendo um desfile ímpar de exemplares que merecem ser identificados, publicados e estudados.
“(...) a cada dia é mais fácil encontrar mulheres a cargo de projetos e construções de espaços coletivos. Isto indica que os clientes coletivos, instituições, empresas e o próprio Estado, têm encontrado maior número de arquitetas no mercado - uma vez que o número de profissionais formalmente preparadas aumentou significativamente” (LIMA, 2014, p. 99)
A importância de dar luz a estes trabalhos é a razão que guia a pesquisa proposta pelo ARQTETATLAS. Quando estes projetos passam a ser conhecidos e estudados, novas narrativas são apresentadas. Dessa forma, a história da arquitetura passa a ser contada a partir de uma perspectiva com mais camadas de diversidade, acentuando a real complexidade do panorama em que estamos inseridas.
Se o significado de algo só existe quando é percebido [1], e a capacidade de percepção depende dos elementos culturais de seu contexto, portanto, fomentar o debate sobre a produção arquitetônica realizada por arquitetas no panorama atual, parece imprescindível para que se alcance uma visão holística do contexto em que vivemos. E assim, enfim, poder ser debatida a sociedade em que queremos viver.
A contribuição do ARQTETATLAS para construção desta história acontece através da pesquisa ativista, com a construção de um banco de dados em forma de atlas, que identifica e publica arquitetura contemporânea feita por mulheres. A América Latina (limitada aos territórios da América do Sul e Central) é o recorte territorial abordado pelo estudo, que conhece e faz com que se conheça o trabalho destas arquitetas. Apesar de suas produções existirem em contextos que possuem aspectos semelhantes, guardam também diferenças culturais e locais, que tornam cada expressão arquitetônica uma oportunidade de aprendizado.
“É comum, na América Latina, o pensamento de que pode ser entendida como uma grande unidade cultural, que abarca suas cidades, seus centros históricos, sua arquitetura, bem como seus problemas políticos e financeiros. Esta é a imagem simplificada que se formou a partir de uma visão externa, que atribui à América Latina um destino comum no panorama mundial.” (LIMA, 2014, p.32)
“O enfoque regional é indispensável para o conhecimento e valorização de diferentes tipos de riqueza patrimonial, bem como para a formulação de planos de revitalização.” (LIMA, 2014, p.32)
O interesse pelo recorte latino-americano mencionado, pretende colocar em evidência o papel da arquitetura regional destacada das análises europeias – evidenciando aspectos que fortaleçam a leitura de uma identidade cultural local própria. Pretende-se, ainda, o melhor entendimento do papel da mulher arquiteta dentro do contexto de países historicamente colonizados, que foram lançados às dificuldades que divergem do contexto da educação da arquitetura importado de países europeus e norte-americanos.
“Hoje, a Europa continua a fantasiar sobre a América, e esta vem reinventando o velho continente há cinco séculos. Por outro lado, as contínuas crises econômicas e políticas, da América Latina refletem-se em sua produção arquitetônica; nesta altura, é muito evidente a clara interação entre política e criatividade, economia e construção da cidade.” (CANTIS apud SAUER, 2019, p.83)
A organização da pesquisa principal acontece através de mapeamentos, com a possibilidade de apresentar de forma analítica os indicadores das paisagens arquitetônicas, culturais, políticas, econômicas, etc., específicas de cada país. A pesquisa ativista, portanto, traz em si a oportunidade da combinação destes dados, a fim de gerar conteúdos que se agreguem às novas pesquisas, com o compromisso de fomentar e elevar o debate em torno do campo do projeto de arquitetura.
XI BIAU e a Seleção Panorama de Obras: "O Habitar e o Habitante"
A arquitetura latino-americana ocupa lugar de destaque no cenário contemporâneo [2], especialmente, ao se tratar de arquitetura experimental, atenta às condições típicas de cada região. Esta afirmação se consolida quando observamos premiações e publicações relacionadas ao tema, nos últimos anos. A discussão e divulgação do debate arquitetônico presente na América Latina são impulsionadas, por exemplo, pelo espaço que vem ocupando a BIAU – Bienal Ibero-americana de Arquitetura e Urbanismo, que chegou na marca de 11 edições no ano de 2019.
Para a análise que segue abaixo, a última edição da BIAU será nosso objeto de aproximação. Nos debruçaremos sobre ela a fim de encontrar tanto possíveis indicadores do aumento do reconhecimento, como analisar a forma de representatividade feminina no campo profissional da arquitetura contemporânea.
Na XI BIAU, 997 projetos foram inscritos na premiação de Seleção Panorama de Obras, com tema “O habitar, O habitante”, e dentre eles, foram selecionados 17 projetos vencedores [3]. Destes, treze propostas são de autoria de escritórios de origem latino-americana, alocados nos seguintes países: Argentina, Brasil, Chile, Equador, México, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela. As demais obras premiadas são de autorias de origem portuguesa e espanhola. Nossa análise irá focar apenas nos projetos concebidos por arquitetas e arquitetos latino-americanos.
Os temas contemporâneos sobre métodos construtivos sustentáveis, racionamento no processo de construção, exploração de métodos colaborativos de concepção e execução de obras, além de investigações e experimentos à cerca de novos materiais, são alguns fatores que chamam atenção na arquitetura latino-americana, e que podem ser percebidos nos projetos vencedores. Dentre eles, por exemplo, está o projeto “Uma nova escola na Comunidade Nativa de Jerusalén de Miñaro”, de 2017, concebido pelo escritório peruano Semillas, liderado pela arquiteta imigrante italiana Marta Maccaglia. Sua atuação é essencialmente centrada em projetos educativos e investigativos com foco na região da Amazônia peruana, explorando o uso de materiais locais e mão de obra colaborativa, envolvendo todas as escalas das entidades comunitárias para a concretização do projeto.
Outro exemplo a ser destacado é a Igreja San Juan María Vianney, do escritório venezuelano Enlace Arquitetura, liderado pela arquiteta Elisa Silva. O projeto da igreja, acompanhado de uma praça pública, ocupa o centro da comunidade rural Media Legua. Frente ao desafio da carência atual de investimentos público e privado em espaços coletivos venezuelanos, o escritório se organiza em torno do uso estratégico da força de trabalho comunitária e mobilização por doações, para a realização da obra.
As arquitetas latino-americanas também vêm se destacando no panorama geral da produção arquitetônica: entre os escritórios autores dos 13 projetos latino-americanos que foram vencedores da 11ª edição do evento, pode-se perceber que a maioria dos nomes mencionados referem-se a equipes coletivas de duas ou mais pessoas. Este dado pode apontar em direção ao caminho da superação da ideia do “arquiteto estrela” – muito comum no século passado, cujo nome e sobrenome masculino eram os típicos títulos a estrelar as notícias que envolviam premiações de arquitetura.
Além da recorrente diminuição dos nomes próprios masculinos, também observamos a inexistência do nome próprio feminino como título de escritórios, dentre os autores premiados. Esta observação pode indicar a ascensão atual dos escritórios com formação coletiva, bem como as práticas colaborativas para concepção projetual. E entendendo que até mesmo os ascendentes escritórios de destaque, que levam como título o nome próprio da arquiteta titular, tendem a apontar em direção ao caminho de superação do conceito da “arquiteta excepcional”, criado pela historiadora de arquitetura Gwendolyn Wright, em 1977, para identificar as maneiras de atuação de mulheres no campo profissional (LIMA, p.17), reconhecendo o preço, infinitamente mais alto, pago pelas profissionais mulheres, para se alcançar um patamar de reconhecimento que pudesse se igualar a um profissional homem.
“a arquiteta excepcional, que, sacrificando a vida pessoal, casamento, filhos, etc., e trabalhando arduamente, alcançou um grau de reconhecimento incomum para uma mulher, e comparável ao de um homem excepcional;” (LIMA, p.17)
Por outro lado, os escritórios premiados são nomeados essencialmente a partir de sobrenomes ou de substantivos comuns, dificultando a identificação das mulheres que estão por trás da concepção dos projetos premiados. Por isso, o ARQTETATLAS entende como absolutamente importante trazer esses nomes à luz, para que estas arquitetas possam ser identificadas e conhecidas. Além disso, entendemos que este reconhecimento é indispensável para que se possa interpretar corretamente as conquistas que dizem respeito ao espaço de representatividade feminina. E, também, reconhecer o papel das lutas feministas por igualdade de gênero no espaço profissional, que cresceram significativamente nos últimos anos, através de ações individuais e coletivas.
Abaixo seguem destacados os 13 projetos latino-americanos premiados na XI BIAU, na Seleção Panorama de Obra “O habitar, o habitante”, bem como a identificação de suas autorias apresentadas em seguida.
Com a exceção dos órgãos públicos envolvidos na concepção dos projetos premiados, restam 11 escritórios de arquitetura. Dentre eles, 8 possuem uma mulher como sócia e/ou fundadora. Tratam-se de arquitetas envolvidas diretamente nos processos de concepção de projetos de seus escritórios, sendo elas algumas das mulheres à frente do mais alto nível debate latino-americano sobre a arquitetura contemporânea. São elas as arquitetas identificadas abaixo:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, nos aproximamos do prêmio Seleção Panorama de Obras, da XI BIAU, como forma de divulgação e reconhecimento dos trabalhos concebidos por arquitetas latino-americanas. Mas também como forma de reassumir nosso compromisso enquanto um coletivo de pesquisa ativista. Consideramos fundamental que os nomes destas arquitetas sejam divulgados com o mesmo empenho e fôlego com que são divulgados os nomes e conquistas de arquitetos.
Empenhar esforços para divulgação desta, e outras pesquisas com mesmo tema, no meio acadêmico, com foco no período de formação das alunas e alunos, tem papel de suma importância e consequente reflexo no futuro profissional de cada um.
“Os discursos construídos pelas historiografias arquitetônicas constituirão o universo de referências e possibilidades do mundo profissional de cada estudante. Não se deve subestimar o impacto destas leituras e falas na formação das mentes estudantis. Estas informações ganharão uma medida razoável de credibilidade à medida que nomes, datas, conceitos e valores são reforçados ao longo dos anos de estudo. Quanto mais elas são repetidas, tanto mais ganham estatuto de verdade, configurando o que estudantes e profissionais passarão a chamar de realidade profissional (LIMA, 2004).” (LIMA, 2020, p.181)
Nosso objetivo é complementar o leque de referências projetuais de alunas e alunos, abastecendo-os de exemplares feitos por profissionais mulheres. Com isso, criam-se oportunidades para que alunas identifiquem o espaço da concepção projetual como um lugar de pertencimento. Além de permitir que este espaço possa ser reconhecido como legítimo, pelos estudantes homens. Em complemento, a apresentação de novas referências de estudo de projeto colabora para a consequente diversidade de soluções e estratégias projetuais absorvidas pelas alunas e alunos, que estarão diante de obras concebidas por um grupo heterogêneo de autores – entendendo que esta diversidade não se encerra apenas em questões de sexo, mas também abrangendo questões de gênero, de raça e sócio geográficas.
Neste sentido, em outubro de 2020, a convite da a convite da professora Arq.ª Dr.ª Clarissa de Oliveira Pereira, a equipe do ARQTETATLAS teve a oportunidade de participar do painel “Arq (in) Casa”, promovido pelo corpo docente do curso de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade Franciscana de Santa Maria – Rio Grande do Sul, Brasil –, apresentando as ideias presentes neste artigo, entre outras análises. O coletivo também apresentou e disponibilizou parte do banco de dados coletado pela pesquisa, organizando-o de forma categórica, com o intuito de apresentar novos dados abastecendo as referências projetuais dos alunos.
Além do trabalho desenvolvido pelo nosso coletivo de pesquisa ativista – o ARQTETATLAS – diversos coletivos feministas emergiram nos últimos anos, como reflexo à cultura discriminatória não mais tolerável. As atuações destes grupos são várias – não só de apresentação das identidades de arquitetas, mas também enfatizando a importância da divulgação de seus trabalhos. Também investem em campanhas de conscientização por equidade de gênero na profissão, através de pesquisas e publicações, em busca de reconhecimento cada vez maior – no meio acadêmico e profissional – e consequente melhoria na oferta de oportunidades. Alguns destes coletivos são os brasileiros “Arquitetas Invisíveis” e “Arquitetas Negras”; o chileno “Mujer Arquitecta”; os argentinos “Un día/Una arquitecta”, “Arquitectas MZA”, “Aca Estamos Nosotras”, dentre muitos outros.
Notas
[1] Parafraseando a ideia central do filósofo imaterialista irlandês George Berkeley, que defende a tese de que “ser é ser percebido”.
[2] "A arquitetura sul-americana voltou a ter destaque nas revistas de arquitetura e, mais uma vez, se tornou um dos focos de debates sobre arquitetura contemporânea. Isso não quer dizer que a arquitetura dessa região tivesse desaparecido das páginas de livros, revistas e periódicos arquitetônicos, mas sua presença havia se limitado aos edifícios modernistas e planos urbanísticos produzidos em meados do século XX. Desde o início dos anos 1930, o modernismo sul-americano tem sido o aspecto mais representativo da tradição arquitetônica do continente.” (HERNANDEZ apud SAUER, 2019, p.150)
[3] A lista completa dos projetos e escritórios vencedores do prêmio Seleção Panorama de Obras, com tema “O habitar, O habitante”, está disponível no site oficial, que pode ser acessado através do link: http://www.bienalesdearquitectura.es/index.php/es/noticias-biau2/archivo-de-noticias/9400-arranca-la-xi-biau-en-asuncion-paraguay-17-proyectos-premiados.html
Referências
LIMA, A. G. G. (2014). Arquitetas e arquiteturas na América Latina do Século XX. São Paulo: Altamira Editorial.
LIMA, A. G. G. (2020) Ensino de arquitetura e urbanismo: discurso, prática projetual e gênero. In: NAME, A. M. Leo. (Org.). Por um ensino insurgente em arquitetura e urbanismo. Foz do Iguaçu: Edunila.
SAUER, C. (2019). Arquitetura x Escassez na produção contemporânea em território latino-americano. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós Graduação em Arquitetura. Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil.
Autora: Mariana Alves Barbosa, Mestranda pelo PPGAU-Mackenzie;
Colaboração: Juliana Trama, Pós-graduanda em Geografia, Cidade e Arquitetura pela Associação Escola da Cidade; Thaís Coelho, Arquiteta e Urbanista, Universidade P. Mackenzie; Amanda Tamburus, Arquiteta e Urbanista, Universidade P. Mackenzie.
Contacto: arqtetatlas@gmail.com
Site: www.arqtetatlas.com
Instagram: @arqtetatlas https://www.instagram.com/arqtetatlas/
São Paulo, Brasil.
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