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"Modernas, midiáticas, mulheres..."

Atualizado: 18 de out. de 2023

Três revistas com selo feminino na difusão da arquitetura moderna brasileira [1]


por Giovanna Augusto Merli e Patricia Méndez


Resumo


Este trabalho aborda quatro exemplos que, classificados segundo o seu momento e a natureza dos seus esforços profissionais, demonstram o eficiente trabalho desenvolvido por arquitetas na difusão e consolidação da arquitetura moderna no Brasil. A metodologia aplicada consistiu em revisar, avaliar, periodizar e selecionar três periódicos que destacaram a arquitetura moderna brasileira, entre 1930 e 1955, e nos quais essas profissionais atuaram nas “sombras”. Cronologicamente se pode observar a Carmen Portinho dedicada a impulsionar a difusão dos princípios modernos em todo o país através da revista PDF, a Maria Laura Osser e Giuseppina Pirro como porta-vozes internacionais dos projetos brasileiros na revista francesa L’architecture d’aujourd’hui e, finalmente a Lina Bo Bardi que com a Habitat se posiciona como fiel defensora das particularidades da arquitetura nacional moderna. Este trabalho transcende as tradicionais perspectivas de observação androcêntricas, abrindo outras portas que complementam os estudos historiográficos latino-americanos, entendidos a partir do compromisso assumido por mulheres, profissionais da arquitetura e do urbanismo, que se posicionaram como entusiastas dos ideais da moderna arquitetura do Brasil a partir da imprensa especializada.


Palavras chave: Arquitetura moderna, Brasil, Publicações periódicas, mulheres, 1930-1960, Carmen Portinho, Maria Laura Osser, Giuseppina Pirro, Lina Bo Bardi


 

Nos últimos anos, a literatura cientifica e acadêmica reconhece uma abertura aos estudos que abordam e recorrem a participação feminina em distintos âmbitos e, entre eles, as discussões que concernem a arquitetura não estão de fora dessa perspectiva. Entretanto, entre as múltiplas tentativas que insistem em demonstrar a anomia profissional das mulheres no campo da arquitetura, prevalece a omissão de um canal que, longe de torná-las invisíveis, permite observar um trabalho fértil e importante: as revistas de arquitetura. Estas são as premissas que sustentam esse texto, a partir da análise de alguns periódicos, que não só mostram o protagonismo inicial, mas também, ao longo do tempo, foram ocupados por inúmeras arquitetas. O material analisado limitou-se a três revistas de arquitetura, publicadas entre 1930 e 1955 e que se distinguiram como as vozes autorizadas a difundir e debater a produção brasileira de arquitetura moderna e, cujas edições, casualmente, foram promovidas ou administradas por arquitetas.


Tradicionalmente, as fontes para o estudo da arquitetura latino-americana e do qual o Brasil não se pode excluir, hão perpetuado a interpretação masculina. Porém, para o tema abordado é necessário contemplar a sincronia de outros aspectos que permitem ampliar o enfoque aqui proposto: por um lado, na transição entre o século XIX e XX a expansão da vanguarda chegaria diretamente relacionada com o desenvolvimento tecnológico dos mecanismos de impressão gráfica e, consequentemente, esses avanços impactaram na imprensa escrita. Por outro lado, é importante considerar o patamar de importância que as revistas de arquitetura alcançaram na América Latina onde, não só encontraram uma janela de oportunidade para informar sobre seus avanços, como também, compreenderam que sua missão era usar suas páginas para convencer e dar credibilidade jornalística à profissão. Finalmente, como também muito se estudou, muita tinta jornalística foi investida para explicar o nascimento e desenvolvimento da arquitetura moderna no Brasil.


Tomando em conta essas considerações e concentrando-nos no recorte de estudo, Brasil entre 1930 e 1955, é possível verificar que por trás das páginas publicadas por PDF, por L’architecture d’aujourd’hui e por Habitat Revista das artes no Brasil, existiu uma gestão potencializada pelo trabalho de quatro profissionais, quatro mulheres modernas e, por serem modernas, também midiáticas.


A precursora: Carmen Portinho


A Revista da Direção de Engenharia da Prefeitura do Distrito Federal foi formalizada graças à promulgação do Decreto 3.759, do dia 09 de janeiro de 1932 (Figura 1). Sua publicação instalou-se em um momento particular da história administrativa e urbana do Rio, após o reordenamento institucional que o município experimentou na época. Foi lançada ao público em julho do mesmo ano, incluindo o primeiro dos vários ajustes pelo qual seu título iria passar, Revista Municipal de Engenharia da Prefeitura do Distrito Federal e, finalmente, reconhecida pelo acrônimo da instituição PDF [Prefeitura do Distrito Federal].


Figura 1: Revista da Diretoria de Engenharia da Prefeitura do Distrito Federal, número 1, 1932. Fonte: http://www.rio.rj.gov.br/web/arquivogeral/revista-municipal-de-engenharia1

Seu primeiro número trazia o texto editorial assinado pelo próprio diretor do órgão, Delso Mendes da Fonseca, afirmava ele que a revista havia sido criada com o objetivo de informar a população da então capital brasileira, Rio de Janeiro, sobre os projetos e obras empreendidas a partir da divisão de engenharia da prefeitura carioca. Entretanto, nos bastidores, tomava força a figura de Carmen Portinho [2] (Figura 2) promovendo um caminho de viés progressista, marca de sua longa carreira.





Figura 2: Carmen Portinho, sem data. Recuperado de MAGALHÃES, Ana Maria. Lembranças do Futuro: Modernismo e Habitação Social. Nova Era Produções de Arte LTDA, 2005 (50min.).

Portinho teve uma trajetória que a sustentou não apenas como precursora em questões profissionais relevantes, mas também como cronista de revistas estrangeiras[3], principalmente do IV Congresso Pan-Americano de Arquitetos, realizado no Rio entre 19 e 30 de junho de 1930 e durante o qual representou o estado do Rio Grande do Norte. Na sede da Câmara Municipal do Distrito Federal, chegou como engenheira em 1926 e, a partir das mudanças orgânicas da instituição que Delso da Fonseca instalou, Carmen abraça a missão de defender e registrar os projetos que marcaram o progresso urbano do Rio de Janeiro, executados ou não pela Diretoria de Engenharia (Nobre, 1999). A oportunidade de assegurar esse compromisso coincidiu com a edição do primeiro número da revista, para a qual foi nomeada secretária editorial, cargo que manterá até 1934, quando, sucessivamente, é promovida primeiro a redatora-chefe e depois a diretora, cargo que ocupou até 1938.


Na primeira publicação é possível vislumbrar a influência de Portinho, reconhecida entusiasta da nova arquitetura, quando é publicado nas páginas da revistas o projeto para a Vila Operária da Gamboa (Figura 3), no Rio de Janeiro, com autoria de Lúcio Costa e Gregori Warchavchik cujo registro a consigna como a primeira habitação moderna de interesse social projetada no Brasil (MUCHINELLI, SANTOS, LOBO, 2009). Além desse projeto, foram publicados dois artigos de autoria própria no mesmo número, o primeiro sobre os esforços feitos por arquitetos holandeses ávidos por reformar a produção arquitetônica de seu país ("Arquitetura moderna na Holanda" página 7), enquanto o segundo descreve a posição disciplinar que a caracterizou como arquiteta ao longo de sua carreira. Dessa maneira, com o título “Influência do nosso clima na arquitetura das prisões” (páginas 14-16), Carmen assinala que, “A arquitetura moderna, com suas lajes de cimento armado em balanço sobre as portas e janelas, vem facilitar a proteção do edifício, contra o sol rigoroso do verão”[4] ; neste como em outros parágrafos da matéria, Carmen demonstra não só sua avançada preocupação nos estudos de soluções técnicas para o conforto ambiental em climas tropicais, como também, valorizava a importância do trabalho local e em equipe, para o que promovia


Num país tropical como o nosso, as questões de orientação, insolação, ventilação e refrigeração merecem estudos especiais, estudos esses que só poderão ser feitos por nós mesmos que temos interesse mais direto na questão. (...) não podemos esperar que nossos problemas sejam resolvidos no estrangeiro. (Portinho, 1932)

Sem dúvida, são artigos visionários e esperançosos ao mesmo tempo, uma vez que sua leitura de levar qualidade a espaços inóspitos como as prisões eram aspectos que só puderam ser institucionalizados no Brasil em 1984, com a entrada em vigor da Lei 7.210 (Viana, 2009).


Figura 3: Projeto de Gregori Warchavhik e Lucio Costa para a “Vila Operária” em Gamboa, Rio de Janeiro. Fonte: Revista da Diretoria de Engenharia da Prefeitura do Distrito Federal, 1932. http://www.rio.rj.gov.br/web/arquivogeral/revista-municipal-de-engenharia1

Ao longo de sua trajetória, o PDF manteve sua linha editorial original de base institucional, mas a direção de Carmen Portinho foi transformando-a em um motor de divulgação da arquitetura moderna brasileira, publicando resenhas, manifestos e obras produzidas não só na – à época – capital do país, mas incentivou e deu conta de qualquer discurso que estivesse alinhado com os princípios da nova variante arquitetônica. Entre alguns exemplares que dão conta disso, podemos citar a edição de novembro de 1934 que trazia textos de Alexandre Altberg sobre o CIAM, bem como as ideias de Oscar Niemeyer, Lúcio Costa, Vital Brasil, Rino Levi ou Affonso Eduardo. Reidy, de quem se pôde ler um total de vinte e dois projetos dos quarenta e quatro que fez em sua vida profissional.


É evidente o esforço editorial que a revista sustentou a favor dos ideais modernos, registando exemplos instalados em todo o país, mas este gesto também foi possível graças aos contatos privilegiados com quem Portinho mantinha amizade e a quem deu espaço nas edições PDF, como os escritos exclusivos de Le Corbusier e outros grupos internacionais como “Praensens 2p”, “Gatepac”, “Mars” e “Tecton”, entre outros. O senso mais democrático de Portinho encontra-se também nas reportagens de projetos equilibradas com o seu tempo e em congruência com o espírito geral da revista que deu prioridade aos projetos com boa arquitetura. Entre essas novidades está o emblemático concurso para a sede do Ministério da Educação e Saúde Pública (1935), ocasião em que o conteúdo do PDF contornou os vencedores para dar lugar às propostas de Affonso Eduardo Reidy e Jorge Machado Moreira em associação com Ernani de Vasconcellos (Figura 4).



Figura 4: Projetos não aproveitados pelo concurso de projeto para o Ministério da Educação e Saúde Pública. Fonte: Revista da Diretoria de Engenharia da Prefeitura do Distrito Federal, 1935. http://www.rio.rj.gov.br/web/arquivogeral/revista-municipal-de-engenharia1


É raro encontrar uma revista dentro de uma instituição governamental, em escala municipal, cujo padrão não fosse centralizado em ações publicitárias ancoradas na gestão política da época. No entanto, a trajetória do PDF, quebrou essa invariável operacional e se tornou uma fonte "oficial" de informação e referência da nova arquitetura, não por acaso que Lucio Costa escolheu o PDF para publicar, em janeiro de 1936, seu texto canônico – reconhecido como o manifesto da arquitetura moderna brasileira – "Razões para a nova arquitetura" (Figura 5), ​​mas também Philip L. Goodwin recorreu a suas páginas para organizar, em 1942, suas famosas produções sob o título de Brazil builds: architecture new and old, 1652-1942. A lista continua com exemplos que confirmam, em todos os casos, a congruência da gestão editorial realizada por Carmen Portinho, cujo compromisso foi a garantia de que as edições PDF se instalassem como plataforma jornalística da modernidade arquitetônica do Brasil (Segawa, 2014). Pelo menos assim foi até o final de 1937, quando chegou seu substituto à chefia da revista e a publicação alinhou suas edições com outros pares institucionais e, desde então, atendeu às demandas internas do Departamento de Engenharia da prefeitura do Rio de Janeiro (Sobreira, 2018).



Figura 05: Esquerda: Capa da Revista da Diretoria de Engenharia da Prefeitura do Distrito Federal, 1936. Direita: Primeira publicação do texto de Lucio Costa “Razões da nova Arquitetura” na mesma edição. Fonte: Revista da Diretoria de Engenharia da Prefeitura do Distrito Federal, 1936. http://www.rio.rj.gov.br/web/arquivogeral/revista-municipal-de-engenharia1


A promotoras: Maria Laura Osser e Giuseppina Pirro


Segundo Cappello (2017) “o inicio da difusão e recepção da arquitetura moderna no exterior, será possível através das interlocuções entre os arquitetos, os editores das revistas e os autores dos artigos publicados (...)”. Essas propostas que ultrapassaram as fronteiras brasileiras também revelam outro tipo de ator nessa rede de influências e informação jornalística: o “correspondente”; um profissional que, muitas vezes, tinha a responsabilidade de promover a troca de material inédito e que atuava como mediador – ou, talvez, como intérprete – de notícias entre editoras e arquitetura. Este foi o papel que ocuparam as arquitetas María Laura Osser e Giuseppina Pirro, no Conselho Editorial da revista francesa L'architecture d'aujourd'hui, entre 1947 e 1950 a primeira e, a partir de 1951, a segunda, ambas como responsáveis ​​pela as notícias brasileiras (Figura 6).



Figura 06: Comitê editorial de L’architecture d’aujourd’hui destacando Maria Laura Osser como correspondente, 1948. Fonte: L’architecture D’aujourd’hui, nro 18-19, 1948.

As habilidades artísticas de Maya - como o apelido de María Laura Osser [5] – foram demonstradas desde seus tempos de estudante e continuaram depois que ela se formou em arquitetura, dedicando-se a vários aspectos editoriais. Ela foi responsável pela proposta gráfica do livro de Richard Neutra e Gregori Warchavchik, Arquitetura social em países de clima quente. Sua conexão com escritórios da vanguarda da arquitetura brasileira faz com que o próprio André Bloc, fundador e editor de L'architecture d'aujourd'hui, a convoque para assumir o posto de correspondente brasileira, cargo que María Laura compartilhava apenas com outros dois colegas latino-americanos: Wladimir Kaspé, do México e Ricardo Moller, da Argentina. (Figura 6)

A revista francesa, que cristalizou em suas páginas os interesses de seu criador, além do incentivo do grupo Union pour l'Art que integrava, combinou variáveis ​​jornalísticas e fez do conteúdo de L'architecture d'aujourd'hui um vantajoso canal de promoção da arquitetura moderna, independentemente da localização geográfica onde foi produzida (Bullock, 2019). Foi nesse cenário que María Laura Osser participou da edição de setembro de 1947, de número 13-14 e, nada menos, que a primeira dedicada exclusivamente à promoção arquitetônica da linguagem moderna feita no Brasil. Esta edição, orientada por Osser, teve como objetivo principal apresentar a produção de jovens arquitetos brasileiros, mas que incluíram também o texto em formato de carta que Oscar Niemeyer dedicou a Le Corbusier sobre a arquitetura do país, "Ce qui manque à notre Architecture" e que posteriormente foi reproduzido em outros formatos editoriais. (Figura 7)


Figura 07: L’architecture d’aujourd’hui, especial “Brésil”, nro. 13-14, setembro, 1947.

Alguns autores [6] deduzem de maneira imprecisa que sua relação com o grupo de arquitetos imigrantes, radicados em São Paulo, favoreceu-os na promoção de suas obras na L'architecture d'aujourd'hui. Entretanto, ao analisar o conteúdo brasileiro publicado na revista sob correspondência de Osser, indica o contrário, uma vez que os arquitetos cariocas representam um maior volume de publicações, além da presença de obras de outros seis estados brasileiros fora do eixo Rio-SP(Merli, Méndez, 2021).

Osser continuou nessa função até 1951, quando o cargo foi ocupado pela arquiteta Giuseppina Pirro [7], sua ex-colega de turma da universidade. Porém, não era a primeira vez que o nome de Pirro participava das edições da publicação francesa, o projeto desenvolvido em equipe com Lygia Fernandes, Francisco Bolonha e Israel Correia para a sede do Jockey Clube do Rio de Janeiro, e que obteve o terceiro lugar no concurso de anteprojeto, foi capa da 21ª edição (novembro / dezembro de 1948) de L'architecture d'aujourd'hui. (Figura 8).



Figura 08: L’architecture D’aujourd’hui número 21, agosto, 1948.


Os êxitos de sua trajetória estudantil e seus primeiros anos de produção arquitetônica no Rio de Janeiro permitiram que Pirro se integrasse rapidamente aos altos escalões do Instituto dos Arquitetos Brasileiros (IAB), sendo a primeira e única mulher a integrar sua diretoria entre 1950 e 1956. (Figura 9)


Figura 09: Boletim interno Instituto Brasileiro de Arquitetos, 1953. Fonte: Archivo digital IAB-SP. Recuperado de https://www.iabsp.org.br/boletins/boletins_1953.pdf

Gesto comum à de sua antecessora em frente à revista, é reiterado no período de correspondência de Giuseppina Pirro quando L'architecture d'aujourd'hui publicou outro número duplo, 42-43, em agosto de 1952 e novamente foi dedicado exclusivamente à produção brasileira. Entre os projetos publicados, destaca-se o assinado por Lygia Fernandes para uma casa de campo na Tijuca; Lygia também havia sido colega de classe de Giuseppina e, esta proposta de autoria única provavelmente a instala como a primeira arquiteta brasileira promovida pela revista francesa.


A intensa atividade jornalística desenvolvida por Pirro foi coerente com sua atuação dentro do IAB, onde se preocupou em estabelecer uma política de divulgação da arquitetura nacional, dentro ou fora do Brasil (Dudeque, 2019). E, essa atuação dedicada à gestão e promoção da própria arquitetura – como o fazia a sua colega Carmen Portinho décadas antes – permitiu-lhe coordenar outras tarefas de divulgação no IAB quando, em 1953, assumiu-se responsável pela “Comissão Nacional de Congressos e Exposições” para a organização e curadoria dos eventos organizados pela instituição (Figura 10).



Figura 10: Boletim interno Instituto Brasileiro de Arquitetos, 1953. Fonte: Archivo digital IAB-SP. Recuperado de https://www.iabsp.org.br/boletins/boletins_1953.pdf

A defensora: Lina Bo


Entre as produções periódicas originadas no Brasil, o surgimento de Habitat revista das artes no Brasil produz um destaque particular no meio editorial e artístico paulista dadas suas qualidades vanguardistas. Sobre sua concepção e conteúdo existe uma vasta bibliografia que foge ao escopo deste artigo, porém, nesta seção, é necessário destacar a ação exercida por sua criadora, Achillina Bo [8].


Lina, como se tornou popularmente conhecida, junto com seu esposo Pietro Maria Bardi editaram o primeiro número da Habitat em dezembro de 1950. Para o casal a vinculação com o mundo editorial tem origens em seu país de origem onde Pietro atuou na Quadrante e Lina dedicou-se às páginas de Belleza, Stile y Vetrina e Negozio, assim como a revista Domus - que dirigiu por um ano – desde então é possível perceber seu interesse pelo debate social, uma causa que a acompanha por toda sua trajetória.


Para Fabiana Terenzi Stuchi (2007), a Habitat… fazia parte de um projeto que almejava modernizar a sociedade brasileira, a partir da construção e difusão do discurso de uma modernidade que integrasse todas as artes gráficas, desenho industrial, arquitetura e toda produção artística comprometida com os ideais e a construção de uma sociedade moderna. Isso também foi relatado no “Prefácio” de seu número de lançamento, publicado em outubro de 1950, quando Lina, sua então diretora, confirmou seus objetivos voltados para a promoção das artes produzidas dentro e fora das fronteiras brasileiras e “ … também a arquitetura, já consagrada no mundo, que se apresentará nas suas inovações mais características e com soluções mais alinhadas com a sociedade tropical…”.


A postura de Lina pôde ser lida em todas as edições, mas chama a atenção seu texto publicado em março de 1951 [9], em que escreve com paixão sobre conceitos ideológicos da moderna arquitetura brasileira. Assim, a autora dirigiu, numa espécie de proclamação, respostas às críticas de colegas internacionais, incluindo alguns compatriotas como Zevi [10], a quem, com agudeza, indicou que

Esta falta de polidez, esta rudeza, este tomar e transformar sem preocupações, é a força da arquitetura contemporânea brasileira, é um contínuo possuir em si, entre a consciência da técnica, a espontaneidade e o ardor da arte primitiva. (...) Quantos são os que sabem distinguir o moderno "autêntico" da remastigação? (Bo Bardi, 1951)”

Chegou a alertar para os riscos de se usar a arquitetura moderna brasileira como linguagem formal, demonstrando, neste e em outros discursos de sua autoria que foram publicados, a firmeza que selaria a produção arquitetônica nacional da época e que, sem dúvida, era coerente. com o indivíduo de seu tempo (figura 11).



Figura 11: Capa da revista Habitat, nro. 2 e texto “Bela Criança” de Lina Bo Bardi publicado na mesma edição, 1951.

A revista teve a coordenação editorial e direção de Lina desde sua criação até 1954, quando Hábitat, além de ser lida nas principais cidades do país, já havia cruzado as fronteiras para chegar a Itália, França, Portugal, Espanha e Estados Unidos e demonstrar, mais uma vez, força na difusão da arquitetura moderna brasileira. Habitat, além de fomentar discussões, aliou sob cuidadoso projeto gráfico - também idealizado por sua mentora - a produção arquitetônica exposta em fotos, desenhos e detalhes técnicos, muitas vezes acompanhados de textos explicativos relatados pelos próprios autores, entre os quais Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas, Rino Levi, Affonso Reidy, Henrique Mindlin, Gregori Warchavchik e, claro, da própria Lina Bo Bardi.


O penúltimo editorial assinado por Lina foi publicado em 14 de fevereiro de 1954, que após 14 números publicados até o momento, ofereceu um balanço do que havia sido alcançado com as edições de Habitat. Aí relatou possíveis trocas editoriais, bem como a publicação da revista em Lisboa, Roma, Paris e Nova Iorque. Lina declarou o fim desta fase experimental da revista e a origem de um novo momento de "a fase construtiva" a cargo dos colegas Abelardo de Souza e Geraldo Serra que a continuam até a década de 1960. Lina ia saindo para vivenciar outros rumos, mas tinha criado não só a revista Habitat, mas também um habitat discursivo, um espaço de efervescência crítica artística no contexto do momento, um ambiente editorial capaz de enfrentar com solidez os detratores da produção da arquitetura local.


Quatro mulheres de vanguarda, contribuições que complementarão a historiografia da arquitetura latino-americana


Graças à legitimidade proporcionada pelo estudo de publicações periódicas e tendo em conta o panorama androcêntrico que tem norteado os estudos historiográficos da arquitetura, é pelo menos desejável tentar uma desconstrução dos cânones existentes para revalidar a participação das mulheres na nossa profissão.

Nesse sentido, os parágrafos anteriores mostram alguns desses esforços que, somados ao compromisso assumido por essas quatro profissionais, nos permitem conhecer a importância que seus papéis midiáticos tiveram na promoção, divulgação e consolidação da arquitetura moderna brasileira para nível global.


Os quatro casos revisados ​​oferecem a possibilidade de romper com os cânones tradicionais da leitura da história profissional e posicionar tanto a elas quanto a suas contemporâneas em um momento histórico especial para a arquitetura brasileira. Assim, foi possível observar Carmen Portinho concentrando-se nos primórdios da difusão dos princípios modernos pelo país, Maria Laura Osser e Giuseppina Pirro como porta-vozes internacionais de projetos locais e, por fim, Lina Bo Bardi como advogada de defesa não só das particularidades da arquitetura nacional contemporânea, mas antes como uma aglutinadora das artes visuais, em uma atitude coerente com a sociedade de seu tempo. Compreender a atuação dessas mulheres permite que se desvencilhe do engodo de que a participação feminina nas revistas de arquitetura ocupava apenas as ilustrações publicitárias.


Ana Gabriela Lima (2013) em referência a Marina Waisman, indica que a arquitetura está além da produção prática, do projeto e da construção, a arquitetura também é teoria, é história e é crítica. Desta forma, deve-se compreender a disposição e a ousadia que essas mulheres tiveram em suas diferentes épocas, principalmente em circunstâncias em que a arquitetura era predominantemente dominada por homens.


Carmen Portinho, Maria Laura Osser, Giuseppina Pirra e Lina Bo, cada uma desde seu lugar e momento, demonstraram seu compromisso com a arquitetura moderna brasileira através da difusão e consolidação, dentro e fora do país. Trazer à luz e valorizar esses esforços é urgente quando se trata de complementar a historiografia da arquitetura latino-americana, incluindo as perspectivas da igualdade de gênero.


 

Notas


[1] - Se apresentam neste texto os avanços e resultados de varios projetos desenvueltos no primeiro semestre de 2020, tais como: a tese doutoral em curso da Ms. Giovanna Augusto Merli, com o título “Modernas brasileiras. Contribuição para uma nova historiografia da arquitetura moderna brasileira, 1930-1960, desenvolvida no Programa de Doctorado en Arquitectura y Urbanismo da Universidad del Bío-Bío (Chile) e os projetos de pesquisa DIUBB180502 1#R / 2018 e FAPEI-UBB-048, sob coordenação da Dra. Patricia Méndez, Pesquisadora Responsável.


[2] - VELAZCO PORTINHO, Carmen (1903-2011). Formou-se em 1924 como engenheira-geógrafa pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro e em 1926 como engenheira civil pela mesma instituição. Em 1939 concluiu a pós-graduação na Universidade do Distrito Federal, tornando-se a primeira mulher no Brasil a obter o título de urbanista.


[3] - Revista de Arquitectura de la Sociedad Central de Arquitectos, Buenos Aires


[4] - PORTINHO, Carmen. “Influência de nosso clima na arquitetura das prisões”. Revista da Diretoria de Engenharia da Prefeitura do Distrito Federal,v. 1 nro. 1, Rio de Janeiro, (junio de 1932) pp. 14-16.


[5] - OSSER, María Laura (1922-2011). Natural de Varsóvia, "Maya", como era conhecida, se destacará como cartunista, antes mesmo de iniciar os estudos universitários. Formou-se arquiteta pela Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, em 1947, quando trabalhou para Henrique Mindlin. Sua prolífica atividade integra áreas relacionadas às artes plásticas como exposições de pintura e escultura de sua autoria, além do design gráfico.


[6] - Neste caso, Falbel (2016) comenta que “Poderíamos especular que a intermediação da correspondente brasileira, Maria Laura Osser, com origens no grupo imigrante teria facilitado a presença dos arquitetos. Efetivamente a partir de 1951, quando a arquiteta Giuseppina Pirro torna-se a nova correspondente da revista, a presença do grupo carioca nas páginas da revista parece fortalecer-se (...)” p. 15.

[7] - PIRRO, Giuseppina (sem dados). Possivelmente filha de imigrantes, formou-se arquiteta pela Escola Nacional de Belas Artes (ENBA) do Rio de Janeiro em 1945, recebendo o Prêmio concedido pelo Instituto de Arquitetos do Brasil ao aluno com as melhores notas. Foi membro do Instituto dos Arquitetos Brasileiros (IAB), de onde participa ativamente durante a sua vida profissional, trabalhou como professora na mesma instituição em que se formou, hoje transformada em Faculdade Nacional, e exerceu a profissão de forma privada, eventualmente associando-se a colegas como Francisco Bolonha, Lygia Fernandes e Jorge Machado Moreira.


[8] - DI ENRICO BO, Achillina (1914-1992). Italiana, formada no Liceu Artístico Mamiani (1933) e arquiteta pela Universidad di Valle Giulia de Roma em 1939. Instalada em Milão no ateliê de Gio Ponti, realiza projetos de interiores, estandes de exposições e feiras industriais, em 1946 se radica no Brasil junto a seu marido. A partir daí deu continuidade à sua produção que, além de intensa, era de vanguarda e abrangia diversos aspectos do design em que se destacava sua preocupação social.


[9] - BO BARDI, Lina. Bela Criança. Habitat, São Paulo, n. 2, jan.-mar. 1951, p.3.


[10] - Quem argumentou que a plasticidade arquitetônica brasileira correspondia a um desvio das referências europeias.


 

Referências


Bullock, N. (2019). L’Architecture d’Aujourd’Hui, the André Bloc years. In: Modernism and the profesional architecture journal.New York: Routledge, New York.


Cappelo, M. B. C. (2017). Arquitetura moderna brasileira nas revistas especializadas estrangeiras anteriores à Brazil Builds (1931-1943). Rutas ibero-americanas. Contactos e intercambios en la arquitectura del siglo XX. Madrid: Editorial Mairea Libros.


Dudeque, I. T. (2019). A contribuição das arquitetas nas primeiras décadas do IAB. Instituto de Arquitetos do Brasil. [S/l].


Esteban Maluenda, A. (ed.), (2016). La arquitectura moderna en latinoamérica. Antología de autores, obras y textos. Sevilla: Ediciones Reverté.


Falbet, A. (2005). Arquitetos imigrantes no Brasil: uma questão historiográfica. In: 6º Seminário Docomomo Brasil, Niterói, 2005.


Lima, A. G. (2013). Arquitetas e arquiteturas na América Latina do século XX. Editora Altamira: São Paulo.


Merli, G.; Méndez, P. (2021). María Laura Osser: una flâneuse para la arquitectura moderna del Brasil. Anales Del Instituto De Arte Americano E Investigaciones Estéticas, (51).


Muchinelli, L. R. A.; Santos, T. B.; Lobo, M. da S. (2009). Dilemas da conservação da Vila Operária da Gamboa no Rio de Janeiro: Proposta de intervenção física com a participação comunitária? In: 8º Seminário Docomomo Brasil, Rio de Janeiro.


Nobre, A. L. (1999). Carmen Portinho: O moderno em construção. Rio de Janeiro: Editora Relume Dumará.


Portinho, C. (1932). Influência de nosso clima na arquitetura das prisões. Revista da Diretoria de Engenharia da Prefeitura do Distrito Federal, 1 (1).


Segawa, H. (2014). Arquiteturas no Brasil. 1900-1990. São Paulo: Edusp.


Sobreira, F. J. A. (2018). Dinâmicas do jogo. Concursos de arquitetura em revistas 1935 a 1971. (Tese de doutorado) Universidade de Brasília, Brasília, Brasil.


Stuchi, Fabiana T. (2007). Revista Habitat: um olhar moderno sobre os anos 50 em São Paulo. (Dissertação de mestrado) Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.


Viana, Lídia Quièto. (2009). A Contribuição da Arquitetura na Concepção de Edificações Penais no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: UFRJ/FAU.


 

Autoras : Giovanna Augusto Merli, Arquiteta (UFU); Mestra em Arquitetura e Produção do Espaço Urbano (Universidade Federal de Uberlândia); Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo (Universidad del Bío-Bío - Chile). Professora e pesquisadora em projetos de pesquisa internacionais.

Patrícia Méndez, Arquiteta (UBA); Mestra em Gestão Cultural (Universidade de Barcelona); Ph.D. Ciências Sociais (FLACSO). Pesquisadora Independente CONICET. Acadêmica na Universidad del Bio Bio (Chile). Coordenadora Técnica CEDODAL. Trabalha em historiografia da arquitetura latino-americana da mídia do século XX. Membro de comitês científicos de periódicos científicos, autor de livros, artigos em periódicos convencionais e pesquisador principal em projetos de pesquisa internacionais.


 

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