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Mulheres, sujeitos da transformação social e urbana: a experiência de integrantes do MST-Leste 1 [1]

Atualizado: 18 de out. de 2023

por Giovanna Tozzi


Resumo:

O trabalho busca discutir o acesso a moradia digna através da luta de movimentos sociais urbanos e seus múltiplos significados na vida das mulheres. Usando como campo de estudo o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra Leste 1 (MST-Leste 1) atuante na cidade de São Paulo e a experiência de participantes desse movimento, exploro a problemática das relações sociais de gênero e analiso as experiências relatadas pelas entrevistadas como uma prática que possibilita o empoderamento e autonomia dessas mulheres.

Palavras chave:

gênero; movimentos sociais; mulheres.


 

O acesso à moradia adequada é difícil em um país como o Brasil, que possui um déficit habitacional de 6,3 milhões de moradias (Fundo FICA, 2019). A lógica perversa do mercado imobiliário – em que os custos de compra de terras e imóveis e mesmo de aluguel são altíssimos –, associada à carência de políticas públicas de provisão habitacional – em um contexto social em que famílias com renda de até dois salários mínimos residentes em áreas urbanas gastam 41,2% da renda familiar em despesas de consumo com à habitação (Guerreiro; Marino; Rolnik, 2019) –, fazem com que a aquisição da casa própria seja extremamente difícil para as camadas mais pobres da população.


Essa conjuntura associada a precariedade urbana das cidades brasileiras fazem com que a aquisição da casa própria seja pauta de luta social organizada. Além do acesso ao lar, os movimentos sociais urbanos de luta por moradia buscam a reforma urbana e o direito à cidade pois entende-se que o habitar não se restringe apenas ao espaço físico da casa, mas envolve também questões de mobilidade urbana, acesso à serviços e infraestrutura da vida urbana.

O MST-Leste 1 surgiu em 1987, na luta pelo direito à terra e moradia na Zona Leste da cidade de São Paulo e Zona Leste Metropolitana (Ferraz de Vasconcelos e Suzano). Cerca de 3.000 famílias dos grupos de origem participam atualmente da entidade, que é composta também pelas 4.343 famílias dos diversos mutirões e conjuntos já conquistados nesses 34 anos de luta. O movimento é apoiado por entidades populares da região e pelas comunidades da igreja católica da Região Episcopal Belém, e tem relação com diversas assessorias técnicas na área urbana e parceria com a ONG Habitat para a Humanidade (MSTLeste1, 2019). O movimento defende a moradia enquanto um direito humano, sobre o qual o Estado deve dedicar a atenção, e acredita na transformação através de políticas públicas com a participação popular e autogestão, proporcionando que as famílias sejam beneficiadas pela atuação ativa em todos os processos (Fahham, 2017).


Mulheres têm grande participação nessa luta. Diante de todos os aspectos da estrutura de opressão que as mulheres vivenciam cotidianamente, o acesso à moradia digna fica ainda mais penoso para elas. A dificuldade de autonomia econômica associada à falta de legislação e políticas públicas que assegurem a posse do imóvel às mulheres colocam-nas em uma posição de maior vulnerabilidade.


A relação direta do gênero feminino com o espaço doméstico, e todas suas implicações denotam que o acesso à moradia digna representa muito mais que apenas um abrigo. A casa, para grande maioria das mulheres, é um bem de primeira necessidade e assume múltiplos papéis na vida dessas, como, por exemplo, um refúgio das relações abusivas de seus companheiros.


“Enquanto eu não tinha um teto para colocar meus filhos embaixo, eu nunca levantei a voz pra ele [marido]. Eu entrei no movimento esperando esse dia. O dia que eu pudesse não depender mais dele e ter um lugar para colocar meus filhos. Agora ele não encosta mais a mão em mim.” (Rodrigues apud Fahham, 2017, p.72). [2]

Nesse relato, Evaniza conta sobre a história de outra companheira do movimento e mostra como a casa representa um ambiente não só de privacidade como de segurança para as mulheres e para os dependentes de seus cuidados. A aquisição da moradia também significa ganhos de autonomia e de empoderamento, já que possibilitam que as mulheres saiam de relações violentas e autoritárias com seus respectivos parceiros.


“Aqui na Leste a maioria é mulher né? Eu acho que é porque as mulheres tão mais interessadas em ter o seu e não depender de um homem pra tudo. Elas tão tomando mais iniciativa”. (FRANCISCO apud FAHHAM, 2017, p.127). As mulheres, atualmente, são maioria em diversos movimentos sociais de luta por moradia e direito à cidade em São Paulo. No MST-Leste 1, cerca de 75% das representações familiares são feitas por mulheres, e das 3.000 famílias participantes aproximadamente 1.403 são chefiadas por mulheres (FAHHAM, 2017).


“No começo do movimento eu sentia que o machismo dos homens era muito maior. Ao longo do tempo vejo uma mudança muito grande na forma que as mulheres hoje se apropriam e exercem a liderança dos processos do movimento. [...] De modo geral você via um protagonismo muito maior dos homens nas tomadas de decisão e na condução dos processos. Eu vejo que hoje houve um deslocamento”. (RODRIGUES apud FAHHAM, 2017, p.68).

A partir da própria trajetória de vida das mulheres entrevistadas e das histórias por elas contadas vemos que além de participantes, muitas mulheres estão em posições de liderança no movimento, compondo a coordenação ou em cargos administrativos, participando ativamente dos mutirões e de outras atividades do movimento.


O machismo é uma coisa cultural, você foi educado de um jeito e acaba passando. Mas com o tempo está mudando. E aqui no grupo as mulheres se sentem confortáveis para conversar e começam a aprender, então eu acho que isso só tende a crescer no movimento. Não só a participação das mulheres, mas também de emancipação, de ser livre mesmo e fazer o que quer e como pode ser feito”. (SANTOS apud FAHHAM, 2017 p.95).

São muitos os motivos para as mulheres estarem presentes na luta pela moradia digna mas, a partir dessa fala da Alessandra, podemos compreender como a participação no movimento social possibilita o empoderamento dessas mulheres ao oferecer ferramentas para saírem de uma situação de dependência e lutarem por direitos que, muitas vezes, transcendem as pautas mais específicas da luta por moradia. É possível perceber a conquista do empoderamento enquanto sujeito político também na fala da Roseane, gerando mudanças nas relações sociais que acontecem tanto na esfera privada quanto na pública:


“Quando eu estava com 10 anos de casada, eu conheci o movimento. [...] Eles nos explicaram como era a luta e eu comecei a participar. As discussões traziam um conhecimento que era novo para mim e esse conhecimento te dá ferramentas muito importantes para lutar. Aí você, uma pessoa leiga, que só vê as coisas na televisão e na mídia, começa a se ver dentro daquilo, dentro da política.[...]Todo domingo à tarde eu pegava minhas filhas e ia. Ele [marido] foi começando a perceber minha transformação. Por exemplo, na eleição eu já tinha o candidato que eu ia votar, eu já tinha pesquisado sobre ele, já sabia tudo. Aí ele me veio com o candidato que o patrão mandou votar, acredita? E eu: 'Chega de votar em quem seu patrão tá dizendo, pelo amor de Deus'. Ele não gostou não, começou a querer me podar, disse que ia me denunciar para o juizado de menores porque eu estava abandonando minhas filhas em casa por causa de um monte de arruaceiro”. (QUEIROZ apud FAHHAM, 2017, p.77).

A educação e a formação política dos participantes são extremamente importantes para o movimento e acontecem a partir de ações práticas e também de suas interações. São compartilhados conhecimentos que transcendem a pauta da moradia e possibilitam transformações em outras esferas da vida pessoal e coletiva.


“Uma das coisas boas aqui do movimento é esse grupo de mulheres, você tá vendo aqui como a gente se reúne, né? [a comissão composta somente de mulheres entra para tomar café na mesma sala que conversávamos]. Eu comecei a participar com as mulheres. Eu comecei a ver mães solteiras trabalhando fora e tomando conta dos filhos e eu falei “Por que eu não posso?”. (QUEIROZ apud FAHHAM, 2017 p.83).

A existência de um grupo de mulheres dentro do movimento possibilita que estas tenham um espaço seguro para compartilhar suas experiências e construírem uma rede de apoio e fortalecimento, tanto pessoal quanto coletivo.


A educação dentro do movimento acontece de diversas maneiras. Como no exemplo mostrado anteriormente, a socialização entre os indivíduos e a troca de experiências é uma delas. “Quando a gente vai pra rua o espírito é de mostrar nossa força, a nossa luta” (NEVES apud FAHHAM, 2017, p.119), por meio desse relato constatamos como o ato de ir pra rua, de se manifestar pelos seus direitos, traz ganhos enquanto sujeito ativo na transformação social. Ou também a partir da atuação fora do movimento, como no caso da Evaniza que, em 2011, foi convidada para ser consultora da presidência da implementação dos programas Minha Casa, Minha vida – Entidades e do Rural, atendendo a uma das pautas do MST-Leste 1, que é a atuação na construção das políticas públicas (FAHHAM, 2017).


“Eu posso falar que vai ter uma janela de frente pra cozinha porque eu briguei com a USINA, na hora de fazer a planta a gente fez seis meses de oficina na Casa de Projetos com as famílias, pra construir a planta do apartamento como a gente queria, pra eles verem quais eram as necessidades das famílias. Então inicialmente não tinha como colocar uma janela de frente pra pia, aí eu: “Vou ficar lavando louça e olhando o que? Não, vamos fazer uma janela aqui”. Então isso é uma discussão nossa, se fosse uma construtora era aquilo ali e pronto. No nosso a gente pode opinar, mas lógico que sabendo as limitações do nosso terreno. Mas a gente pode falar, pode opinar. Foi uma discussão ótima de entender a composição do prédio”. (DANTAS apud FAHHAM, 2017, p.101).

No modelo de autogestão, em que o movimento tem autonomia nas decisões sobre o projeto, a comunicação entre as famílias e a assessoria técnica é extremamente importante e valiosa. É na interação entre esses agentes, de maneira não hierárquica, que a troca de conhecimentos e experiências acontece e cada um expõe seus saberes e necessidades.


“Na obra nós tivemos uma assistente social que deixava bem claro que o trabalho leve não seria exclusivo para mulher. Os trabalhos seriam iguais. Por exemplo, quando tínhamos que carregar aquelas treliças pesadíssimas, os homens pegavam em dois ou três e nós pegávamos em quatro, mas nós pegávamos! A fundação fomos nós que fizemos. [...] Cavamos os mesmos buracos que eles, o mesmo trabalho, o mesmo horário”. (QUEIROZ apud FAHHAM, 2017, p.80).

No movimento, tanto no trabalho administrativo quanto nos mutirões, as tarefas são divididas igualmente entre os participantes, independente do gênero, colocando homens e mulheres para exercer as mesmas funções.


“O movimento me deu mais garra de lutar. Eu terminei meus estudos em 2007 e tive meu filho em 2009. Depois disso eu não pensava mais em estudar. Achava que do jeito que tá, tá bom. Aí eu vi que não. O movimento dá oportunidade pra muita gente, é só você querer. Eu achava que pra mim tava bom só ter terminado o Ensino Médio, mas aí eu comecei a ver que não, precisava de mais. Conhecimento nunca é demais. Agora tô estudando pedagogia. [...] Tá muito difícil essa rotina toda: estudar, trabalhar movimento e família. Mas eu vou conseguir”. (NEVES apud FAHHAM, 2017, p.122).

Assim como Priscila Neves, Cristiane Dantas também está cursando o ensino superior na área de serviço social, decisão tomada após se inserir no movimento. Esses exemplos e de outras entrevistadas mostraram como a participação no movimento, por meio do conhecimento dos processos, das discussões, da luta ativa e institucional, incentivou o retorno aos estudos.


“Hoje eu sou assistente social, trabalho, ganho bem, sustento minha casa, ajudo minhas filhas no que precisar. Hoje eu tento criar minhas filhas de um modo diferente. Eu quero incentivar elas a lutar pelo que querem, quero que busquem um companheirismo e o respeito num relacionamento”. (QUEIROZ apud FAHHAM, 2017, p.84).

É possível inferir que a formação política trabalhada dentro do movimento de moradia estimulou e empoderou essas mulheres a procurar novas oportunidades e maneiras de viver – desde a busca pela formação educacional até melhores condições de trabalho e independência financeira, mas também por novas formas de se relacionar, que levam consigo e repassam para outras, como conta Roseane:


“Apesar de não ter curso universitário, eu me sinto muito preparada porque o movimento me ensinou muita coisa. Então eu digo que o movimento te prepara pra vida. Antes eu era uma pessoa tímida, eu nunca tinha falado muito em público. Jamais pegaria num microfone e hoje não, é uma coisa corriqueira. [...] Então eu acho que a minha maior transformação nesse processo foi como pessoa. E eu levo isso tudo pra dentro de casa e pra minha família”. (SANTOS apud FAHHAM, 2017, p.90.

A partir dessas diferentes maneiras de repassar e adquirir conhecimento – desde construção civil à novas formas de relacionamentos – e da participação ativa na transformação social ficam evidentes os ganhos de autonomia e benefícios que a participação no movimento trouxe para a vida pessoal dessas mulheres, possibilitando uma consciência crítica acerca da realidade social.


 

Notas


[1] Este artigo foi publicado no Archdaily em dezembro de 2020. É um excerto originalmente publicado na Revista Cadernos de Pesquisa #10 da Associação Escola da Cidade e disponível para consulta aqui. Trata-se de publicação proveniente de Trabalho de Conclusão de Curso entregue em 2019 na Associação Escola da Cidade sob orientação da Profa. Dra. Amália Cristovão dos Santos.


[2] As narrativas femininas apresentadas nesse artigo pertencem a: Cristiane de Oliveira Dantas, Alessandra dos Santos e Priscila Neves, que faziam parte da coordenação executiva do MST-Leste 1 no momento da pesquisa; Evaniza Rodrigues e Roseane Queiroz, que também compunham a coordenação da União dos Movimentos de Moradia – São Paulo (UMM-SP); Mirian de Souza, que atuava no mutirão Milton Santos; e Mayara de Souza Francisco, do mutirão Martin Luther King.


 

Referências


Fahham, M. P. D. V. (2017). Mutirão por autogestão e as mulheres. Escola da Cidade, São Paulo


Fundo Fica. (2019). Recuperado em: www.fundofica.org.


Guerreiro, I., Marino, A., Rolnik, R. (2019). Custos urbanos, especialmente com moradia, comprometem renda das famílias. Recuperado em: www.labcidade.fau.usp.br/custos-urbanos-especialmente-com-moradia-comprometem-renda-das-familias.


Movimento dos Trabalhadores sem Terra Leste 1. (2019). Recuperado em: www.mstleste1.org.br.


 

Autora: Giovanna Tozzi, Arquiteta e Urbanista, São Paulo

Sobre a Autora: Giovanna Tozzi é arquiteta e urbanista graduada em 2019 pela Escola da Cidade – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo com intercâmbio profissional em Medellín, Colômbia. Durante a graduação integrou o grupo de pesquisa Plataforma Plus que estudou características urbanas e sociais com foco habitacional da região da Vila Buarque, localizada no centro da cidade de São Paulo. Estagiou na SEHAB (Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo) onde desenvolveu um mapeamento e pesquisa sobre os conjuntos habitacionais da cidade de São Paulo. Em 2018 trabalhou no escritório colombiano CONNATURAL (Arquitectura y Paisaje) onde colaborou no projeto Veinte Parques Para Vos, projeto urbano de revitalização de praças públicas na cidade de Medellín e no projeto Jardín Buen Comienzo Casa del Encuentro, uma creche pública no Museu de Antioquia. Integrou a equipe do escritório RADDAR (Research as Design / Design as Research) colaborando em projetos interdisciplinares, principalmente nas exposições AAA – Antologia de Arte e Arquitetura e Arte em Campo e no projeto de intervenção conservativa e adaptativa do Complexo Esportiva Pacaembu. Atualmente colabora na equipe do Ateliê Navio desenvolvendo projetos urbanos voltados para a primeira infância. Brasileira, nascida em São Paulo.



 


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