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"O Mito do Fio de Ariadne: revelando a primeira arquiteta"

Atualizado: 18 de out. de 2023

por Érica Maria de Barros Martins



Resumo


O presente artigo aborda a questão da invisibilidade das mulheres na arquitetura e busca explicitar a importância de uma revisão historiográfica com perspectivas feministas. O mito “o Fio de Ariadne”, uma estória da mitologia grega, serve de base para essa discussão. Ao levar em conta pensamentos de autoras contemporâneas, questiona-se o título de primeiro arquiteto endereçado à Dédalo através da reflexão sobre o que é fazer arquitetura/ser arquiteta.


Palavras Chave: Arquitetura Feminista, Mitos, Mitologia Grega, Arquiteta.


 


Este artigo faz parte de uma pesquisa de mestrado que estuda a invisibilidade das mulheres na arquitetura e inicia-se a partir da discussão de um mito advindo da mitologia grega como um convite para um diálogo complexo e necessário sobre as mulheres na arquitetura, a partir da perspectiva feminista. É nesse sentido que conceitos da disciplina arquitetônica precisam ser revistos


A primeira edição da revista Lina inicia-se com uma provocação que se faz urgente: “Onde estão as mulheres arquitetas?” Eis que há uma resposta fácil de responder, entretanto a argumentação é complexa, pois as arquitetas estão em todo lugar, porém ocultadas por meio de histórias que floreiam os atos heróicos masculinos, supervalorizando-os.

Essa discussão não se trata de uma competição para definir quem foi o primeiro arquiteto, mas de entender a situação, valorizar feitos importantes, compreender e criticar como a história vem sendo escrita e contada. E como reforça a declaração de Colomina, ao ser entrevistada pela arquiteta Kiri Robyn McKenna:


"Não é apenas uma questão de adicionar alguns nomes ou mesmo milhares à história da Arquitetura. Não é apenas uma questão de justiça humana ou precisão histórica, mas uma maneira de entender mais completamente a arquitetura e as formas complexas em que é produzida". (Colomina, 2017)

E ainda temos Zaida Muxi (2018) afirmando que a invisibilidade feminina na arquitetura resulta de uma histórica falta de interesse masculina de registrar a atuação das mulheres e que Plutarco, em seu livro As virtudes das mulheres (43-60 d.C.)[1] explica que seus contemporâneos evitavam, propositadamente, posicionar as mulheres em suas histórias. Despina Stratigakos (2016), da mesma forma, expõe a questão dos historiadores, enfatizando que são várias e complexas as razões pelas quais elas são esquecidas. Considera que até pouco tempo, os pesquisadores admitiram que não havia representantes femininas antes de meados do século XX e, consequentemente, não houve busca por esses nomes. Dessa forma, era improvável que eles encontrassem personagens femininos casualmente, considerando que os métodos tradicionais de pesquisa se concentram em arquivos e bibliotecas, instituições que retardaram a coleta do trabalho feminino.


Reescrever a história não é, necessariamente, descobrir outros lugares, e sim, enxergar as entrelinhas, ir às fontes primárias, reler, revisar e rever de uma forma diferente da perspectiva hegemônica. Considera-se, portanto, que um dos principais motivos pelo qual se deve estudar a atuação das mulheres é mostrar a realidade da profissão nas suas diferentes variantes e dinâmicas. Este artigo segue com o intuito de promover um debate de uma historiografia alternativa sob a ótica particular do olhar feminino.


Segundo Diana Agrest (2008), a transição para a modernidade foi responsável pela criação de narrativas que autorizaram o apagamento das mulheres na história. As transformações que ocorreram nesse período são mais profundas do que a maioria das mudanças sucedidas em épocas precedentes. Foram desenvolvidas teorias evolucionárias que representam “grandes narrativas” contadas em um enredo que envolve uma miscelânea de mensagens veladas. A autora complementa que a pós-modernidade, por outro lado, caracteriza-se pelo desaparecimento dessas grandes narrativas, tendo como dominante a questão dos indivíduos, como seres que possuem um passado definitivo e um futuro profetizável. A perspectiva pós-moderna visualiza reivindicações diversas, heterogêneas e plurais de conhecimento. E é nesse momento que os panoramas feministas são inseridos nos debates e na nova história. Sendo assim, o período incorporou uma série de discussões relevantes, embora as mulheres ainda não tenham alcançado o lugar merecido de igualdade.


Anthony Guiddens (1991) declara que a era da modernidade é passado e a contemporaneidade é um momento transitório, em um limiar para além da modernidade e da pós-modernidade, já tendo assumido uma grande variedade de termos para definir esse novo momento. Um período em que as consequências da modernidade estão se tornando mais radicalizadas e universalizadas. Uma época de liquidez, fluidez, volatilidade, incerteza e insegurança, um conceito de uma modernidade continuada, ou como Zygmunt Bauman (2001) define, a modernidade líquida, ou seja, um “momento em que os referenciais que possibilitavam o desenraizamento e reenraizamento do velho no novo são liquefeitos e, assim, perdidos”.


As histórias criadas deixaram rastros facilmente identificáveis, com as devidas modificações proporcionadas pelo passar do tempo. Um exemplo de pensamento que se mantém ativo como consequência dos ideais da modernidade é a manutenção de alguns mitos que não são fenômenos exclusivamente do passado, eles estão em constante construção.


Raphael Patai (1972) afirma que os mitos devem ser encarados como formas de atuar na atualidade. Há uma relação entre os mitos e os aspectos da vida cultural denominados como costumes, ritos, instituições, crenças, etc. O autor ressalta que “novos costumes e novas situações sociais criam novos mitos.” Esses paradigmas pautam a vida das pessoas e possuem o “poder de atrair, fascinar e influenciar”. Valida leis, crenças, religião. Autoriza costumes e instituições. Justifica acontecimentos socioculturais e até fenômenos naturais.


O texto “Elogio de Ariadna”[2] de Josep Quetglas (2002) traz o mito grego do Fio de Ariadne. Uma estória fantástica, que fala sobre seres humanos em sociedade, receptáculo de diversas interpretações. É contada há mais de 3.000 (três mil) anos e continua sendo transmitida, desde então, por meio da história oral.


É importante contextualizar o enredo, para que seja possível uma melhor compreensão sobre o texto. Inicia-se com Dédalo, um artesão muito inteligente, considerado um dos artífices mais habilidosos e criativos de Atenas, conhecido por suas invenções e pela perfeição de seus trabalhos manuais, simbolizando a engenhosidade humana, o “pensar com as mãos”. O mito se passa depois de exilado de Atenas para Creta, por ter assassinado Telos, o seu discípulo que mostrou-se muito talentoso.


Ao chegar à cidade de Creta, Dédalo é incubido pelo rei de Minos de construir um labirinto para aprisionar um monstro com corpo de homem e cabeça de touro, o Minotauro, fruto da união indevida da sua esposa Parsifae com um touro de beleza descomunal. Esse ser tornou-se feroz e precisou ser preso. A partir daí, o construtor do labirinto é considerado o primeiro arquiteto da história e é exatamente a valorização desse trabalho que precisa ser revista.


Por conta de um castigo, anualmente, sete homens e sete mulheres de Atenas eram sacrificados para suprir as necessidades do monstro. Teseu, filho do rei de Atenas, resolve acabar com isso e se propõe a matá-lo. Aconselhando-se com o oráculo, foi revelado que somente venceria o obstáculo se fosse auxiliado com o amor. Ao chegar ao local, o jovem rapaz conhece Ariadne, filha do rei de Minos e ambos se apaixonam. Para salvá-lo da fera e garantir que voltasse com vida da missão, ela teve a ideia de entregar-lhe uma espada e um novelo de fio de ouro, e propôs que ele o amarrasse na entrada do labirinto e fosse desenrolando para poder encontrar a saída, na volta, servindo de guia e garantindo o sucesso do plano.


A estratégia funcionou. Teseu consegue matar o monstro e com o auxílio do fio encontra o caminho de volta e leva com ele Ariadne. Mais tarde, ele abandona-a em uma praia deserta em Naxos. Ela é resgatada por Dionísio com quem se casa no Olimpo onde lhe é oferecida uma coroa de ouro. Esta coroa se transformou na constelação de Ariadne.

O mito de Ariadne, que tem inúmeras interpretações filosóficas e psicológicas, é contado a partir de convenções que fortalecem a idéia estereotipada de como o apoio de uma mulher apaixonada pode levar o herói à vitória e fortalece o papel secundário feminino na sociedade tradicional. Como confirma Brunel:


A aventura de Ariadne começa, para nós, no momento em que ela se apaixona por Teseu. Mas em três momentos nessa aventura, Ariadne é sucessivamente a iniciadora do herói, a amante abandonada, a mulher desposada pelo deus. Estas três histórias fazem dela uma figura exemplar de mulher e mais precisamente de mulher que ama. Ela é apaixonada, cujo segredo se encerra em uma sabedoria desconhecida, um sofrimento sem nome, uma divindade que excede. Na feminilidade radical de sua paixão amorosa, permanece um ponto escuro que escapa para sempre aos homens. (Brunel, 1988, p. 67)

A estória explicita a vaidade masculina que pode ser direcionada à crítica do Star System[3], tema bastante discutido por Denise Scott Brown. A arquiteta destaca a insistência no individualismo heróico desse sistema, gerando uma intimidação de trabalhos colaborativos, como se a atividade em equipe diminuísse o crédito da conquista, além da importância da divulgação dos alcances femininos através de prêmios ou outros reconhecimentos


O estrelismo do artesão gerou uma competição a ponto de não tolerar a idéia de um rival. O jovem Telos deu provas de notável habilidade e em vez de pensar em uma possibilidade de um trabalho em parceria, Dédalo o atirou de uma torre bastante elevada. Minerva, protetora da habilidade, vendo-o cair evitou a sua morte, transformando-o numa ave, que recebeu seu nome, a perdiz. Ou seja, mais uma vez, o homem é salvo pela “proteção” feminina.


Josep Quetglas (2002) quebra paradigmas e afirma que Dédalo não deve receber o título de primeiro arquiteto pela criação do labirinto. O autor desqualifica a obra e afirma que aquilo não pode ser considerado como arquitetura, justificando que é uma construção que não faz sentido e que serve para se perder, sendo impossível encontrar o lugar de saída.


Cabe então a seguinte pergunta: um arquiteto é aquele capaz de entender a demanda do cliente e resolver o problema que está sendo proposto? A resposta pode ser: ser arquiteto vai muito além disso. Ser capaz de construir sem forma não torna Dédalo um arquiteto. Ele estava apenas cumprindo o que o cliente pediu.


Segundo Fuão (2003, p. 24): "O labirinto é o espaço para a desorientação. É a metalinguagem da existência do espaço, do espaço bruto." e prossegue Fuão (2003, p. 25) "Ele expressa o mundo existencial, simboliza o inconsciente, o erro e o distanciamento da origem da vida". O próprio fio que desvendou a lógica do labirinto constitui em si a sua origem. Ariadne desvenda o labirinto. Ela desembaraça o desafio criado ao esticar o fio. Assim, o arquiteto não foi quem construiu o equipamento, mas quem o desvendou.


Portanto, o título de primeiro arquiteto deve ser dado para Ariadne. Pois ela foi capaz de entender, dar sentido, e decifrar completamente aquela construção. Com um gesto muito simples, como faz um grande profissional, ela foi capaz de desvendar o local por absoluto e dar um sentido a ele. Isso, para Quetglass (2002), é fazer arquitetura. É necessário despir o invólucro heróico de tarefa da desconstrução feita por Ariadne, como explicita o autor:


Ao mesmo tempo como Ariadne molda o labirinto, descreve-o, destrói-o - desarma-o, desarticula, torna-o ineficaz como uma armadilha do malandro, revela seus mecanismos de sugestão. A arquitetura, portanto, só pode ser desconstrutiva. (Quetglas, 2002, p.165, tradução nossa)

E é nessa essência, de rever os conceitos arquitetônicos já estabelecidos, que a arquitetura precisa caminhar. Questionando as idéias estabelecidas pela sociedade e reinterpretando os “mitos” que carregam mensagens baseadas nos arquétipos. É possível identificar, por exemplo, a imagem do homem habilidoso, inventivo e realizador, retratado por Dédalo. O arquétipo da mulher teimosa, capaz de tudo para realizar as suas vontades, é representada pela Rainha Parsifae. Observa-se também o modelo do monstro, produto de uma união indevida entre uma mulher e um homem. Teseum, representando os heróis, capaz de salvar a todos e Ariadne, a mulher apaixonada que está pronta para ajudar o amante.

Entender que as histórias são contadas por meio de pontos de vistas existentes, formados por uma série de fatores e compreender que toda a história contada pode ser revisitada é um ponto de partida.


A história não é uma simples meritocracia: é uma narrativa do passado escrita e revisada - ou não escrita - por pessoas com agendas. (Stratigakos, 2016, p. 65, tradução nossa).


Dessa forma, propõe-se aqui uma nova leitura desses personagens, ressignificando cada um deles, como por exemplo, a própria Ariadne, mulher capaz de salvar um homem que segue para resolver uma questão, sem pensar em um plano, mas não é ela que ganha o título de heroína. A desconstrução desses paradigmas direciona a ações importantes para perspectivas futuras dentro da profissão, permitindo assim que a Arquitetura seja repensada, tornando-a mais inclusiva.


 

Notas


[1] - Els mérits de les dones, 2011.

[2] - O texto “Elogio de Ariadna” é escrito em espanhol e o nome da personagem em castelhano se difere do nome em português, denominado Ariadne.

[3] - Termo, intitulado por Denise Scott Brown, utilizado para denominar o sistema que valoriza os arquitetos de renome, tornando-os uma grife.

 

Referências


Agrest, D. (2008). À margem da arquitetura: corpo, lógica e sexo. In: Nesbitt, K. (Org.). Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teórica 1965-1995. São Paulo: Cosac Naify, p. 584-599.


Bauman, Z. (2001). Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar.


Brunel, P. (org.) (2000). Dicionário de mitos literários. 3. ed. Brasília/Rio de Janeiro: Editora UNB & José Olympio.


Colomina, B. (ed.) (1992). Sexuality and Space, Princeton Papers on Architecture, Vol. 1, Princeton: Princeton Architectural Press.


Muxi, Z. (2018). Mujeres, casas y ciudades: Más allá del umbral. Barcelona: Dpr-barcelona.


Guiddens, A. (1991). As consequências da modernidade. 5 ed. São Paulo: Unesp.


Patai, R. (1972). O mito e o homem moderno. São Paulo: Cultrix. Tradução de: Otávio Mendes Cajado.


Plutarc. (2011). Els mérits de les dones. Barcelona: editorial Adesiara.


Quetglas, J. (2002). Elogio de Ariadna. In: Pasado a limpio I: Pre textos de arquitectura. Girona: Col.legi D’arquitectes de Catalunya, Demarcació de Girona, p. 163-165.


Stratigakos, D. (2016). Where are the women architects? Princeton: Princeton University Press.


Waisman, M. (2011). O Interior da História: historiográfica arquitetônica para uso de latino-americanos; tradução de Anita Di Marco. Ed. Perspectiva. São Paulo.

 

Autora: Érica Maria de Barros Martins, Arquiteta e urbanista, autônoma, Fortaleza, Ceará


 

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