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"O Protagonismo Feminino nos Movimentos Sociais de Moradia"

Atualizado: 18 de out. de 2023

Por Isabel Mayumi Zerbinato, Laura Melo Avelar e Raquel Garcia Gonçalves



Resumo:

O presente trabalho parte dos conceitos de produção do espaço urbano, direito à cidade e a divisão sexual do trabalho, buscando refletir sobre o papel feminino nos movimentos de moradia, e o processo que leva à uma maior assimilação entre os âmbitos privado (do lar) e o público (urbano), considerando o princípio de que “o pessoal é político”. Os procedimentos metodológicos adotados envolvem a pesquisa bibliográfica e uma entrevista realizada com uma das coordenações do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas.


Palavras-chave: protagonismo feminino; divisão sexual do trabalho; direito à moradia.



 

Introdução


Este artigo pretende refletir sobre o papel das mulheres nos movimentos sociais de moradia. Para isso, será estabelecida uma relação entre a ideia de direito à cidade e a ideia de gênero, partindo do entendimento de que as mulheres compõem um número expressivo de lideranças nas ocupações pela cidade. Questiona-se: qual o papel das mulheres nestas ocupações? É possível vincular esse papel com a diferença social de gênero na relação com o lar? Como podemos relacionar a ideia de direito à cidade com a ideia de gênero?


Considerando que o espaço urbano é “um produto social, resultado de ações acumuladas através do tempo, e engendradas por agentes que produzem e consomem o espaço” (Côrrea, 1989), compreende-se que há uma disputa de interesses entre esses agentes – os proprietários dos meios de produção e os grupos sociais excluídos – sobre a função e o valor da terra urbana. Historicamente, a questão fundiária no Brasil tem, em geral, operado sob a lógica do capital à serviço de grupos hegemônicos. As classes sociais mais baixas também contribuem, de acordo com as suas condições materiais, para a produção do espaço urbano, mesmo quando submetidas à segregação socioespacial.


Esse contexto de exclusão contribui para a intensificação dos conflitos urbanos. Dentre eles, destacam-se aqui os relacionados à questão da moradia. À princípio, entende-se o direito à moradia como parte de um conjunto de outros direitos que compõem o que Lefebvre (2016) apresenta como o direito à cidade. Atualmente, a Constituição Federal Brasileira de 1988 propõe resguardá-lo enquanto direito inviolável. Todavia, o país apresenta um enorme déficit habitacional vinculado à atuação dos agentes produtores do espaço urbano que detêm o capital e à omissão do Estado.


A Fundação João Pinheiro indica que, em 2015, o estado de Minas Gerais apresentou o 2º maior déficit habitacional do país, e que na Região Metropolitana de Belo Horizonte faltavam 158 mil domicílios. Esse problema progride em função da especulação imobiliária e dos interesses do capital e persiste mesmo tendo em vista que o número de domicílios vagos em condição de serem ocupados e em construção somam quase 194 mil unidades na RMBH, o que seria, de maneira rudimentar, suficiente para abater todo o déficit.


Em 2001, foi promulgado o Estatuto da Cidade que, dentre os avanços instituídos no sentido de desenvolver cidades menos desiguais, promove o conceito de função social da propriedade urbana, regulamentando os Art. 182 e 183 da Constituição Federal de 1988. Entende-se que as propriedades que não estiverem cumprindo adequadamente sua função social, ou seja, seu uso “em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”, podem ser taxadas por meio de impostos progressivos e até desapropriadas.


Nessa conjuntura, intensificam-se os movimentos sociais de moradia que tem como uma das principais pautas a luta pela reforma urbana, a qual “visa democratizar o direito à cidade, reestruturando o espaço urbano não utilizado ou mal utilizado a fim de garantir o acesso à moradia e outros direitos sociais, como lazer, cultura, saúde e educação” (MLB, 2014). Desta forma, partem da ideia de que ocupar é


um ato de rebeldia, de confronto com a ordem estabelecida, de questionamento à ‘sagrada’ propriedade privada capitalista. [...] Toda ocupação de imóvel sem uso, seja público ou privado, é legítima, pois, enquanto morar dignamente for um privilégio, ocupar é um dever do movimento de moradia! (MLB, 2014)

Ao organizar e erguer uma ocupação, esses grupos atuam enquanto agentes produtores do espaço urbano, tecendo novas realidades socioespaciais na trama da cidade que vão, muitas vezes, contrariar os interesses das classes hegemônicas. Destaca-se, neste trabalho, o papel das mulheres na consolidação e liderança de ocupações urbanas. O entendimento desse papel passa pela compreensão da divisão sexual do trabalho.


Essa dinâmica de poder estrutura-se a partir das “relações sociais de sexo” (Hirata & Kergoat, 2007), cuja constituição caracteriza-se pela “destinação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apreensão dos homens das funções de forte valor social agregado” (ibid). Entende-se que foram construídas, portanto, afinidades entre o feminino, o trabalho reprodutivo e o espaço privado, em oposição (e tensão) ao masculino, o trabalho produtivo e o espaço público.


Essa segregação por gênero despolitiza a mulher e seu trabalho doméstico, uma vez que, segundo Vianna (2014), “o espaço público é considerado o espaço político por excelência, sendo que o lar sempre foi colocado como espaço unicamente de competência da família”. Quando o trabalho reprodutivo é considerado apolítico, resta ao homem exercer a política de fato. Não obstante, “O Estado” - representante do capital coletivo - pode ser interpretado enquanto o “verdadeiro ‘Homem’ que se beneficia do trabalho doméstico” (Federici, 2019).


Estabelece-se uma hierarquização das funções femininas e masculinas na sociedade, de maneira que o homem é colocado em uma posição de provedor e representante da esfera pública no núcleo familiar, uma vez que é ele quem possui uma força de trabalho assalariada, se relacionando com o ambiente do lar como um local de descanso e ócio. Já para a maioria das mulheres, a casa permanece sendo vista como um lugar de trabalho (Muxí Martínez, 2018).


O trabalho doméstico, além de ter sido imposto às mulheres, “também foi transformado em um atributo natural da psique e da personalidade femininas [...] em vez de ser reconhecido como trabalho, porque foi destinado a não ser remunerado.” (Federici, 2019), ou seja, ocorre uma invisibilização e desvalorização do esforço feminino, que é considerado pela sociedade apenas como um ato de amor, carinho e dedicação, mesmo que seja uma função básica para a existência e o funcionamento dessa. Como argumentam Kapp e Lino (2008), “ sem reprodução, não há produção, pois ela não teria objeto, nem teria quem a realizasse.”


Ao se analisar a divisão sexual do trabalho, é imprescindível ressaltar que a participação de uma grande parte das mulheres na esfera do trabalho produtivo, a partir da década de 1980 no Brasil, não elimina o trabalho reprodutivo, mas sim, acrescenta mais uma tarefa às funções femininas, constituindo uma “dupla jornada de trabalho”, que pode ser considerada tripla se, ainda, ela estuda ou se atreve a adentrar a política institucional, por exemplo.


Tendo sido sempre reclusas ao lar e suas implicações, o vínculo estabelecido entre a maioria das mulheres com a moradia fica evidente. E é essa a relação a qual se acredita ser uma das razões para as quais a participação nos movimentos sociais por moradia seja, majoritariamente, feminina. Sendo assim, entende-se que a luta pela habitação parte inicialmente de uma esfera pessoal.


Em razão desse vínculo entre as mulheres e o lar, quando encontram-se em grupos sociais excluídos e deparam-se com a falta de moradia digna - uma disfunção urbana produto do acúmulo de capital - surge a necessidade de lutar por esse direito. Nesse contexto, são elas que organizam, lideram e participam ativamente dos movimentos sociais de moradia. Ainda, compreende-se a moradia como “não só como um direito humano universal e, portanto, fundamental, mas também como um instrumento para o exercício dos demais direitos e do efetivo alcance da autonomia da mulher” (Veloso, 2017).


Ao se aproximar das relações políticas do Estado, nesse percurso de lutas por direitos, entende-se que as instâncias de representação, poder e visibilidade são dominadas pelo masculino, o que resulta em uma insuficiência de políticas urbanas baseadas nas perspectivas femininas. Perpetua-se, assim, uma sociedade segregadora, criada a partir do ponto de vista masculino. Por isso, se torna ainda mais imprescindível a participação delas no âmbito político, confrontando a ordem vigente imposta pelo Estado - o Homem - a fim de alterar essa realidade desigual da cidade, pela qual elas reivindicam seu direito.


Entende-se, portanto, que, apesar da luta por moradia iniciar-se no âmbito privado, ela também representa para as mulheres a esfera do público. A máxima feminista “o pessoal é político” – frase cunhada pela ativista Carol Hanisch ao final dos anos 60 – sugere a necessidade de compreender tanto os contextos públicos quanto os mais privados para que surjam novas propostas mais adequadas às cidades (Muxí Martínez, 2018). Por fim, torna-se notável a luta das mulheres nos movimentos sociais de moradia como um instrumento que caminha para uma possível dissociação do Estado enquanto “Homem”, o que permitirá a valorização das subjetividades da mulher a fim de, como estabelecido por Zaida Muxí Martínez:


Resignificar la construcción de nuestras ciudades a partir de las experiencias y las maneras diferentes de enunciar cada realidad que tengan hombres y mujeres. Para ello, es imprescindible nombrar el mundo en femenino, [...] resaltando especialmente, aquellas que tienen como factor común la experiencia personal como primera fuente de conocimiento e información, porque son aquellas capaces de enunciarse y construirse desde otro lugar (MUXÍ MARTÍNEZ, 2018).


Resultados e discussão


Inicialmente, foi realizada uma pesquisa bibliográfica, apresentando e problematizando a temática abordada: o protagonismo feminino nos movimentos sociais de moradia. Em seguida, no dia 6 de abril de 2020, Poliana de Souza - mãe, educadora popular, moradora da ocupação Eliana Silva, em Belo Horizonte, coordenadora nacional do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) e membra do diretório estadual do Partido Unidade Popular (UP) de Minas Gerais – nos concedeu uma entrevista que não somente reitera as ideias apresentadas anteriormente, como também amplia a concepção quanto ao papel das mulheres nos movimentos de moradia. O texto que se segue apresenta trechos da entrevista e análises a partir das colocações de Poliana. Ela afirma existir uma forte relação estabelecida entre as mulheres e a luta por moradia, evidenciando o caráter essencialmente feminino desse movimento, uma vez que as mulheres


que mais sofrem com a ausência de um teto, [...] com a falta de escola pros filhos, com a falta de creche, que sofrem por exemplo por não ter um abrigo seguro [...] então a luta da moradia é uma luta feminina, e essas mulheres vão se descobrindo ao longo do processo da construção dessa luta. No início, elas são mais tímidas, elas vêm porque precisam de um teto.


Figura 1. Poliana Souza, em contexto de candidatura à vereança pelo partido Unidade Popular em outubro de 2020. Fotografia: Luiza Poeiras Amorim

A atuação das mulheres na construção desse movimento ocorre de maneira crescente, isto é, inicialmente, partem da necessidade pessoal de um lar e, ao longo do processo, adquirem a percepção de que a luta por moradia está, sobretudo, vinculada a um empoderamento feminino, que compreende também uma esfera política. Dessa forma, passam a ter uma participação mais ativa nos processos que compõem essa luta.


Por exemplo, ao relatar como se deu a formação da ocupação urbana Eliana Silva, em Belo Horizonte, Poliana ressalta que houve, a princípio, uma divisão de funções, de modo que as comissões de segurança e estrutura foram designadas aos homens – que eram maioria na coordenação – e as comissões de limpeza e cozinha às mulheres. Contudo, percebeu-se que, ao longo do tempo, as mulheres passaram a ocupar mais funções até que a coordenação se tornasse majoritariamente feminina. Ela atribui, como uma das causas dessa transformação, o abandono da luta por parte dos homens. A partir desse relato, é possível pontuar que essa conformação inicial das comissões evidencia a divisão sexual do trabalho, uma vez que as mulheres ficaram responsáveis pelas tarefas que dizem respeito ao trabalho reprodutivo.


Outro ponto importante é a renúncia masculina em relação ao movimento, que tem se demonstrado recorrente nas histórias das ocupações, uma vez que os homens tendem a se identificar menos com a luta pelo lar. Além disso, a outra razão pela qual ocorre essa alteração na configuração das comissões e coordenação é a formação de novas concepções por parte das mulheres, que passam a se enxergar e a se afirmar enquanto protagonistas.


Figura 1. Poliana Souza, em contexto de candidatura à vereança pelo partido Unidade Popular em outubro de 2020. Fotografia: Luiza Poeiras Amorim

“A gente costuma dizer que é uma formação pra elas, [...] a luta pelo teto é uma luta de empoderamento feminino”, acrescenta Poliana. Entende-se, assim, que existe um processo que leva essas mulheres a compreenderem que, ao reivindicar o direito à moradia própria, isso não deixa de ser uma luta política, ela passa a “se ver num lugar de conquista, num lugar social”.

Dentre as muitas dificuldades encontradas até que se chegue a essa compreensão, destaca-se a falta de identificação entre as mulheres, e o que elas entendem ser a sua luta pessoal, com as lutas coletivas. Nesse sentido, Poliana afirma que


o nosso trabalho tem sido de mostrar pra elas que o que elas fazem é uma luta feminista, é uma luta de empoderamento das mulheres [...]. No início você não tinha mulheres querendo ir pro 8 de março [manifestação do Dia Internacional da Mulher]; hoje essas mulheres mobilizam para que outras vão, porque elas conseguem se ver na luta feminina [...]. Então, a luta pela moradia, que foi um pontapé pra ela, que foi a primeira luta que ela se viu, passa a ser um patamar para que ela vá em busca de outras coisas. [...] [Elas] vão criando consciência e se somando às outras lutas da cidade.

Entende-se que essa concepção é primordial para que a luta por moradia extrapole os âmbitos privado e público, vinculando, definitivamente, o pessoal com o político - esferas que de maneira alguma deveriam ter se tornado alheias uma à outra.


Ao se incluírem nas demais lutas políticas, as mulheres encontram-se em oposição (e tensão) às concepções institucionais masculinas, afrontando a lógica vigente de se produzir a cidade. Isso ocorre porque o papel social feminino, vinculado exclusivamente ao âmbito do privado, tem sido historicamente desvalorizado, uma vez que é considerado apolítico, fazendo com que elas sempre enfrentem “o capital e o Estado com menos poder do que os homens e em condições de extrema vulnerabilidade social e econômica.” (Federici, 2017). Ainda, sua participação permite a inauguração um debate relativo a essa tensão, uma vez que elas carregam consigo uma subjetividade que tem um grande potencial de enriquecer o modo de se pensar e se produzir as cidades, incorporando diferentes perspectivas que compõem a pluralidade inerente e necessária ao urbano.


Destaca-se que a relevância do papel das mulheres nos movimentos de moradia, que provém também da imposição da divisão sexual do trabalho, não reflete a ideologia naturalista de que as funções reprodutivas sejam intrínsecas à feminilidade, mas sim, se recusa a apagar


as experiências coletivas, o conhecimento e as lutas que as mulheres acumularam no que se refere ao trabalho reprodutivo, cuja história tem sido uma parte essencial da nossa resistência ao capitalismo. Reconectar-se com essa história é hoje um passo crucial, para homens e mulheres, tanto para desfazer a arquitetura de gênero de nossas vidas quanto para reconstruir nossas casas e nossas vidas como comuns (Federici, 2011).

Considera-se, portanto, que a luta por moradia é essencialmente feminina, um ponto de partida que possibilita a dissolução dos limites estabelecidos entre o privado e o público, o pessoal e o político, e que tem grande potencial para acrescentar diversidade ao debate referente à produção do espaço urbano.


 

Referências


Corrêa, R. L. et al. (1989). O espaço urbano. São Paulo: Editora Ática.


Federici, S. (2019a). O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. (Coletivo Sycorax, Trad.). São Paulo: Elefante.


Fundação João Pinheiro - FJP. Déficit habitacional no Brasil. Consultado em 23 de março, 2020, via Biblioteca Digital do Governo do Estado de Minas Gerais em:


Hirata, H. Kergoat, D. (2007). Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de Pesquisa, 37, (132), pp. 595-609. Doi:


Kapp, S. Lino, S. F. (2008). Na cozinha dos modernos. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, 15, (16), pp. 11-27. Disponível no OJS:


Lefebvre, H. (2016). O direito à cidade. São Paulo: Centauro. (Obra originalmente publicada em 1968)


Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas - MLB. (2014). Morar dignamente é um direito humano! As propostas do MLB para a Reforma Urbana. Consultado em 23 de março, 2020 em: https://www.mlbbrasil.org/formacao


Muxí Martínez, Z. (2018). Mujeres, casas y ciudades: más allá del umbral. Barcelona: dpr-barcelona.

Vianna, F. L. (2014). Mulheres na cidade: a invisibilidade e a exploração da condição da mulher no espaço urbano. (Tese de bacharelado). Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Brasil.


 

Autoras:

Isabel Mayumi Zerbinato, graduanda em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte/MG, Brasil.


Laura Melo Avelar, graduanda em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte/MG, Brasil.


Raquel Garcia Gonçalves, professora associada do Departamento de Urbanismo da Escola de Arquitetura da UFMG, professora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (NPGAU) da UFMG, em Belo Horizonte/MG, Brasil.


 

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